Um velho e bafiento maço de papéis encontrado numa antiga habitação em Arroios, Lisboa, regista, a modo de «diário», o quotidiano de um homem simples que da província rumou a Lisboa onde viveu entre paradoxos e incompreensões.
29 de Julho de 1938
A minha cunhada, a Encarnação, que anda numa fona a preparar o casamento da filha, pediu-me que lhe redigisse os proclamas para serem lidos nas igrejas das freguesias dos noivos, Quirino e Berta. Quer assim adiantar trabalho e economizar alguns centavos.
Indo à igreja de Arroios, disseram-me que não era necessária tanta coisa como sucede nas aldeias. Para os proclamas de Berta basta fixar um simples bilhete de visita no guarda-vento da porta principal da igreja e enviar um impresso próprio para o Fundão, terra do noivo.
Para sossegar a Encarnação fui hoje a casa de meu irmão António, mas este, logo que soube o resultado da minha diligência, arranjou pretexto para discutir comigo:
– A mim o sacana do padre «Marreco» não me aceitou os proclamas porque queria ele fazê-los recebendo oitenta escudos. Um ladrão, que se desmascarou.
Procurei acalmar-lhe a fúria, explicando-lhe o assunto. Porém um casal, com aspecto de saloios rudes, ignorantes e tapados, a quem meu irmão chamava afilhados e que ali estavam de visita, meteram-se malcriadamente na conversa. Vomitaram calúnias contra a confissão e isso influenciou o meu irmão, que fervia em pouca água:
– Para que havemos de nos confessar a um padre, quando ele é mais pecador do que a gente? São uns canalhas que procuram enganar as mulheres nos confessionários, combinando com elas encontros secretos.
Irritado com tais asneiras, resolvi atingir os intrusos:
– Os bandalhos que dizem mal da confissão, assim como da Igreja e dos padres, são ratos de cano de esgoto. Vivem atentando contra a paz que cada um procura na religião e promovem a revolução que nos trará anarquia, fome e morte.
Notando o modo áspero e firme com que reagi, os intrusos retiraram-se e as coisas acabaram em bem. Porém notei em meu irmão uma certa revolta, seguramente causada pela minha forte e decisiva intervenção que fez desandar os «afilhados».
Proclamas – Também designados por pregões ou por banhos, os proclamas (ou proclames) eram um antigo costume que consistia no anúncio de casamento lido na igreja pelo pároco, durante três domingos, tendo por principal motivo descobrir impedimentos, se os houvesse. No terceiro domingo de proclamas o casamento era dado como certo, se, até lá, não houvesse conhecimento de factos que a ele obstassem. Segundo os Cânones, não se realizando o matrimónio dentro de seis meses, deveria repetir-se a leitura dos proclamas.
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«Diário de Joaquim Salatra», por Paulo Leitão Batista
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