São tantas e tais as mudanças na vida das gentes do Interior, especialmente da Raia e mormente em Quadrazais, que vale a pena recordar como era a vida em Quadrazais nos primeiros sessenta anos do século passado e estabelecer uma comparação com os anos que se seguiram, sobretudo os actuais.

II – Ciclo Religioso
1 – O Natal iniciava o ciclo religioso. Dias antes, os rapazes roubavam os carros de vacas e, com eles, iam à noite procurar troncos de castanheiros nos campos ou nos currais, que colocavam à Praça.
Em vésperas de Natal fazia-se o Presépio no altar da Senhora do Rosário, com musgo e com as figuras tradicionais. O Natal era festejado com missa do galo à meia-noite, onde se beijava o Menino. Os cânticos mais típicos da época eram:
Alegrem-se os Céus e a Terra; O Menino Deus Nascido; Da vara nasceu a vara; Glória in excelsis Deo e Entrai, pastores, entrai.
Acabada a missa do galo, os homens iam até à fogueira do madeiro e, com bengalas ou cacetes, batiam no madeiro, atiçando-o, ao mesmo tempo que diziam:
Zumba no madeiro,
que ainda está inteiro!
Os meninos punham o sapatinho à lareira, debaixo da chaminé, onde os pais depositavam pequenos presentes que aqueles viam na manhã seguinte, com a alegria característica. Nesse dia vestiam uma casaquinha ou uma camisola novas ou, por vezes, apenas umas meias novas ou um lenço novo. Tornavam a beijar o Menino e deitavam-lhe no çafatinho umas moedas ou o que de melhor os meninos tinham recebido como prendas, como: uma laranja. O meio ambiente era, geralmente, de neve e gelo nas ruas.
2 – Ano Novo – Logo cedo, graúdos e alguns miúdos iam às casas das pessoas, sobretudo de quem tinha vinha, dar as Boas-Festas, devendo entrar com o pé direito à frente. Era hábito darem-lhes uma copa de aguardente, sendo que alguns acabavam bêbados.
Nas ruas, à entrada ou à saída da missa as pessoas desejavam: «Que Nosso Senhor nos deixe chegar d’hõinje e num ano! Boas entradas! A que respondiam: Amém, Jasus!»
Na Igreja voltava-se a beijar o Menino e cantavam-se os mesmos cânticos do Natal. Muitos dos bêbados cantavam de modo exagerado, pelo que o padre Correia tinha muitas vezes de lhes chamar a atenção, em tom bem agastado.
No fim da missa o padre lia as nomeações dos novos mordomos de todos os santos e a prestação das contas dos mordomos anteriores. De tarde balhava-se no Vale. À noite os rapazes iam pedir a janeira com a concertina.
3 – Os Reis – Na missa beijava-se o Menino pela última vez e cantavam-se os mesmos cânticos do Natal. E acabava a quadra do Natal.
4 – O Aniversário, ou Aniversário das Almas – é no dia 13 de Março. A Irmandade das Almas, criada, certamente, num dia 13 de Março dum ano que já se esqueceu, devia ser uma associação muito importante, já que tinha uma casinha própria, opas, lanternas e estandartes próprios, mordomos (juiz, secretário e tesoureiro) com pompa, a fazer lembrar a Irmandade do Espírito Santo de outrora. Dias antes tocavam os sinos com muita frequência para lembrar que deveriam pagar as suas quotas, aguardados pelo tesoureiro na Casinha das Almas, onde numa arca se guardavam os talões dos irmãos. Dizia-se a missa das Almas por intenção de todos os irmãos falecidos. O juiz tinha de dar de jantar (almoço) aos padres. A esmola para as Almas era pedida nas missas com a bonita bandeja das Almas, em madeira, em forma de concha, com as Almas do Purgatório no meio a cores e envoltas nas chamas.
5 – Na Quarta-Feira de Cinzas – iam à missa, onde o padre colocava na cabeça a cinza. Não era dia santo. Era o início da Coresma (Quaresma), época em que os meninos não podiam brincar com as fitas do Carnaval e não se podia assobiar nem cantar.
6 – A Encomendação das Almas – Na minha infância já era raro fazê-la. Anos antes era comum. Durante a Quaresma, juntavam-se à noite os rapazes e cantavam as ladainhas pelas ruas, levando uma grande cruz de madeira existente na igreja. Cerca da meia-noite subiam à torre do sino e encomendavam as almas. Punham-se quatro homens, cada um a cada ventana da torre e cantavam:
Bendito e louvada seja a Paixão do Redentor!
(Ó) que para nos livrar das culpas, morreu por nosso amor.
Morreu e ressuscitou, (ó) de Sexta par’ó Domingo.
Devotos fiéis cristãos, amados de Jesus Cristo,
(Ó) Rezemos um Padre-Nosso com oitra Avé-Maria
À sagrada morte e Paixão de Cristo. Seja pelo amor de Deus!
(Cada um rezava pelo seu santo).
Devotos fiéis cristãos, rezemos um Padre-Nosso,
Em lavor (louvor) de Santo Antonho, que nos guarde
Por onde quer que formos e andarmos.
Seja pelo amor de Deus.
(Rezava-se o Padre-Nosso, precedido duma badalada no sino grande).
(Outro recomeçava com a reza pelo santo da sua devoção. Terminavam cantando):
Recorda, cristão, que és terra, olha bem que hás-de morrer,
Hás-de dar contas a Deus do teu bom e mau viver.
Não caias em atentação cum’á calma na geada.
Olha qu’andam para nos atentar os três inimigos d’alma.
O primeiro é o mundo, que cá o havemos de deixar.
O segundo são nossas carnes, que em vício se hão-de acabar.
O terceiro é o demónio que anda para nos atentar.
Para que ele nos não atente, rezemos devotamente
Um Padre-Nosso c’uma Avé Maria à Sagrada Morte e Paixão de Cristo.
Seja pelo amor de Deus!
(Davam nova badalada no sino grande).
Estavam lá em cima quanto tempo quisessem, a ponto de chegarem a levar para a torre do sino cargas de lenha para se aquecerem.
Nem todos os dias se fazia a encomendação das almas. Por vezes cantavam apenas as ladainhas dos santos.
Punham-se alguns homens às esquinas, embrulhados em mantas, e cantavam alternadamente. Passavam a outra esquina. Ao chegarem à capela do Santo Cristo, rezavam a estação do Santíssimo Sacramento, caminhando para a igreja. Essa estação consistia em rezar 6 Pai-Nossos, 6 Avé-Marias e 6 Glórias.
7 – Domingo de Ramos – Cada um levava para a missa um ramo de oliveira, maior ou menor. Na igreja benziam-se os ramos. Por cada Pai-Nosso que cada um rezasse, arrancava uma folha do ramo. Iam em procissão à volta da igreja. Fechavam as portas. À entrada o padre cantava um responsório, a que o sacristão-o Tó Ratatau ou o Zé Tchebinho – respondia do lado de dentro. Depois o padre batia três vezes com o pé da cruz na porta e esta abria-se. Atiravam então sobre a cruz todas as folhas que haviam colhido. Seguia-se a missa, começando então a Semana Santa.
8 – A Semana Santa – A partir de Quarta-Feira de Trevas deixava de se tocar o sino, que era substituído pelas matracas à volta da aldeia nas mãos da rapaziada. Cobriam as imagens a partir desse dia.
Na Quinta-Feira Santa, na missa havia a cerimónia do lava-pés. Saía em procissão o Divino Manso Cordeiro e, por outra rua, Nossa Senhora das Dores. Sobre os andores, à volta das imagens havia uma caixa aberta que as crianças enchiam com flores que colhiam nos campos. As cerimónias eram representadas ao vivo. Na procissão incorporavam-se a Verónica e Madalena.
Nas escaleiras do Manel da Cruz o padre fazia o primeiro sermão.
Junto da casa do Sr. Zezinho dava-se o encontro de Nossa Senhora das Dores com o Filho. Do alto das escaleiras da casa o padre fazia o sermão do Encontro.
Na Sexta-Feira Santa saía em procissão o Senhor morto no esquife. Na igreja havia um sermão em que no andor de Nossa Senhora das Dores ia uma cópia do lençol da Verónica com a imagem de Cristo morto e que era entregue ao padre pregador que, do alto do púlpito, a mostrava ao povo e tecia o seu inflamado sermão sobre a morte de Cristo. Nesse tempo a igreja era iluminada por um candeeiro com várias velas. Mais tarde passou a usar-se um petromax.
À meia-noite de Sábado-Aleluia acabava a missa e à porta da Igreja começava a rapaziada a cantar as alvíssaras a Nossa Senhora, tirando o chapéu:
Albíxaras, mãe de Deus, – bis
Ai! Já vo-las vimos a dar – bis
O vosso amado filho – bis
Tornou a ressuscitar – bis
Tocava o tambor nas mãos dos Casados, Zé ou Ismael.
Seguiam, cantando, às casas dos mordomos dos diversos santos, a começar pelas dos mordomos de Nossa Senhora e depois do Senhor, cantando as alvíssaras e também a moda dos cascoréis:
A moda dos cascoréis – bis
E também a das rosquilhas – bis
E também a das amêndoas – bis
Que se dão às raparigas – bis
Os mordomos davam-lhes cascoréis, pão-leve, vinho doce e dinheiro.
9 – A Páscoa – No Domingo de Páscoa, após a missa, havia procissão com todos os santos levados nos seus andores à volta de metade da povoação, cortando no Vale pela rua do comércio do ti Barreiro. Depois, os rapazes compravam as amêndoas às namoradas em tabuleiros à Praça, muitas vezes jogando o sete e meio sobre os tabuleiros para ver quem pagava. De tarde havia balho, com o tocador pago com o dinheiro que haviam recebido dos mordomos na véspera.
Alguns rapazes e raparigas davam voltas ao povo a apular o cântaro enfeitado com lírios e outras flores colocadas na abertura daquele, atirando-o uns aos outros, cantando:
O capitão do navio
Mandou-me agora chamar.
Como hei-de passar o rio?
Como hei-de passar o mar?
E o refrão:
Já morreu a coradinha,
Já a foram enterrar.
Sete cães e sete gatos
A foram a acompanhar.
Coradinha, olá, ó linda,
Coradinha, olá, meu bem!
No Domingo de Páscoa o padre ia tirar o aflar (folar) de casa em casa, embora não todos os anos. O padre entrava nas casas, dava as Boas-Festas, dando o crucifixo a beijar aos da casa e benzendo esta. Os donos davam esmola em géneros. O padre ia almoçar a casa dos mordomos da Senhora, petiscando na casa dos outros mordomos.
Na Segunda e Terça Feira repetia-se o apular do cântaro.
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