Fiquei deveras orgulhoso ao visitar a exposição de nosso compatriota, o pintor Amadeo de Sousa Cardoso, em Paris, no Grand Palais, patente ao público até ao próximo dia 18 de Julho. Tinha já visto as exposições deste pintor na Europália de Portugal em Bruxelas, em 1991, e na Gulbenkian, em 2006, mas foi nesta que percebi a grandeza e a profundidade deste artista. Senti-me mais português ao ver um dos nossos, agora reconhecido no Grand Palais, no mesmo espaço onde ainda há pouco tempo tinham sido expostos nomes que dispensam apresentações, como Velasquez, Picasso e E. Hopper…

Com esta exposição, Amadeo volta agora a Paris, cidade onde tinha vivido há um pouco mais de cem anos, com cerca de duzentos quadros, muitos deles pintados nesta cidade que frequentou e onde contrair amizades com os maiores do seu tempo. O esquecimento deste grande pintor, manietado entre os armários de Manhufe a as caves da Gulbenkian, teria dado razão ao director do Grande Palais, Laurent Salomé, para se extasiar perante o portfólio da exposição que lhe era apresentado pela comissária, Helena de Freitas, ao afirmar: quem é este pintor que eu ainda não conheço?
Em 1906, com a idade de 19 anos, fixa-se em Paris. Cedo percebe a profusão de ideias e de correntes que estão a nascer nesta cidade. Cria amizades com Modigliani, Brancusi, les Delaunay e outros. Aprende depressa, digere o seu mundo rural de origem, distancia-se dele para melhor o destilar nos seus quadros impregnados de tradições de cavalaria e de caça, de tradições e de romarias, de mercados minhotos e das variadas paisagens do Marão. Mas absorve também ideias vanguardistas da época. Passa pelo cubismo, expressionismo, fauvismo, art nouveau, abstracionismo. Não se fixa numa só escola. Nas suas pinturas desfilam múltiplas identidades e escapa a qualquer categorização. É ele próprio que o reconhece: «Tenho mais fases que a lua.»
Nos poucos anos de vida artística, (desde a fixação em Paris até à sua morte em Espinho, nem 10 anos mediaram!) a sua originalidade é apreciada em Paris, em Nova York, em Berlim e em Viena, onde expõe ao lado de Picasso, Léger, Braque, Renoir, Cézanne, Van Gogh. É notado pelo grande crítico de arte, Walter Pach, que o leva a expor na Armory Show, em Nova York, Chicago e Boston onde foi o artista que vendeu mais quadros (sete) e que só a guerra de 1914 o impediu de se mostrar noutras paragens.
No Porto e em Lisboa, faz algumas exposições aquando do seu regresso de Paris, mas Amadeo passa quase despercebido. É Almada Negreiros que reconhece o seu valor, designando Amadeo como a primeira descoberta de Portugal na Europa do Século XX. Alia-se ao movimento modernista, próximo de Fernando Pessoa, de Mário de Sá-Carneiro e dos protagonistas de revista Orpheu que tentavam pôr em causa a cultura burguesa, através de novas formas, tanto na poesia como na pintura.
É muito variada e prolífera a obra de Amadeo Sousa Cardoso. Nos 20 desenhos que ilustram um conto de Flaubert: La Légende de Saint Julien L’hospitalier, Amadeo, através de um material semelhante à iluminura, transmite-nos o seu universo onírico de cavaleiro medieval, de caçador acompanhado dos seus galgos e falcões, a percorrer florestas misteriosas e a encontrar animais selvagens.
Amadeo encandeia-se com as variadas cores que consegue colocar nos seus quadros. Desdobra-as e estiliza-as até à exaustão, inspirando-se naquilo que sugeria Apollinaire sobre a pintura pura para se concentrar cada vez mais na abstração. Através da desmultiplicação das cores conduz-nos para a redescoberta de um mundo de objectos e de paisagens novas que nos apraz contemplar.
Amadeo apresenta-nos o seu quotidiano natural e rural, mas transformado admiravelmente pela sua paleta de pintor que atravessa todos os estilos, não se fixando em nenhum em particular. É o seu inesquecível Marão com as montanhas a ondular até ao infinito, é a sua casa de Manhufe que integra na paisagem transmontana. Vêm-lhe à mente as tradições religiosas e é a «Procissão do Corpus Christi», procissão religiosa e civil na maior parte das cidades portuguesas da época, que pintou após o seu regresso à sua aldeia.
É também influenciado pela arte popular que via na feira de Barcelos e pelos relatos de faca e de alguidar que os ceguinhos vinham cantar em verso pelas aldeias. As violas, os rabecões, as bonecas, as janelas, os moinhos, as máscaras e muitos outros objectos impregnados da cultura popular são elementos de tratamento pictural de Amadeo, a deambular por terras que conhece bem e nas quais gostaria de ser acompanhado por galgos e falcões para exercer a sua missão de cavaleiro e a sua arte de caçador por terras do Marão.
Na última fase da sua vida, a sua pintura integra elementos de um mundo que se moderniza: o telégrafo, lâmpadas eléctricas, telefone, máquinas registadoras… Nas colagens incorpora letras e palavras aplicadas em pochoirs, espelhos, alfinetes de cabelo, referências a publicidade, como se nos quisesse transmitir que a publicidade invasiva transformaria o mundo moderno.
No fim da exposição, ficamos a imaginar quantos quadros Amadeo não poderia ainda ter pintado se não tivesse sido arrebatado na plena juventude dos seus trinta anos de idade, pela gripe espanhola…
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«Pedaços de Fronteira», opinião de Joaquim Tenreira Martins
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Novembro de 2012)
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Excelente reportagem… Para quem não tem ocasião de ir, aqui está a resenha que explica e (in)forma.
Belo texto de Joaquim Tenreira…
Gosto muito. É um trabalho maravilhoso reportando o leitor para uma aprendizagem de pintura e interpretação preciosíssimas para um povo que não tem a cultura da pintora no seu quotidiano. É um artigo que tem jus a ser partilhado nas redes sociais para que se conheça uma personalidade única nos pintores portugueses assaz reconhecido internacionalmente e que o Autor faz justamente a sua apologia que muito pode contribuir para que o País conheça uma das maiores figuras de sempre nas artes que Portugal muito se honra. Há que o conhecer e este artigo fá-lo. Os meus parabéns ao Autor.