:: HISTÓRIAS DE QUADRAZENHOS :: O Sr. Leitão que, contemplando o seu gado, deitava contas à vida e concluía que poderia ainda ser rico com a herança do Sr. Nacleto, se morressem os filhos deste, mais fulano e mais sicrano, era conhecido pelo Padece, talvez porque os conterrâneos pensassem que padecia da cabeça ao ter ainda pretensões à herança do Sr. Nacleto, o homem mais rico da terra.

Os dias passavam e continuava a guardar gado sem vislumbres de enriquecer por outros meios, fosse por herança, fosse por algum milagre trazido nas asas do vento, que euromilhões ainda não havia, nem mesmo euros.
Como não via maneira de sair da cepa torta, embora o gado lhe desse para comer e a mulher, padeira de pão-centeio, lhe desse uma ajuda, para esquecer as mágoas, à tardinha, depois de arrumar o gado, aí ia ele direitinho para a taberna do Manal, que haveria de ser seu genro, ao casar com a Flávia. Vinha de lá bêbado que nem um carro.
Chegado a casa, entrepicava por tudo e por nada e vá de zurzir os costados da mulher. Fugiam os filhos com medo dele, embora não conste que lhes tenha posto um dedo em cima. Mas a mulher! Pobre mártir!
Lembrava-se então de ir à loje buscar o malho e vá de rachar a cantareira, partindo, caçoilos, pratos e tudo o mais que a cantareira suportava, enquanto durasse a bebedeira e ninguém que acudisse a acalmá-lo. Não sei se partia os copos, que estes eram necessários para beber a pinga!
A estranhos não consta que alguma vez tivesse agredido ou faltado ao respeito. Era mesmo amável para quem, em tom meio jocoso, meio sério, quando conduzia a pastoria aos campos o saudava com um agradável:
– Olá, sr. Leitão!
De manhã matava o seu chibo, que a Padeça se encarregaria de vender. E lá partia ele com o gado, de lata de farelo com algum osso para o cão da serra de pescoço bem guarnecido de colares com picos de ferro, não viessem os lobos atacar o gado e o cão de guarda ser asfixiado com alguma mordidela no pescoço. Ao ombro a manta, no Inverno, a jaqueta dependurada do ombro esquerdo no Verão, sempre com o farnel e na mão direita o cajado com que castigaria alguma cabra mais bailarina que se afastasse dele.
A Padeça ia para a loije amassar a farinha centeia. Duas fanegas chegavam. Já tinha a sua freguesia fixa e já sabia quanto precisava de amassar. Não tardaria que a Edites forneira lhe passasse à porta e mandasse fintar e tender.
Aí vai ela de tabuleiro à cabeça para o forno de cima, do Sr. Zézinho. Aí separava a massa. Já finta, em pedaços, fazia os pães. Escolhia belisco para os distinguir das outras padeiras, vendedoras ou não. Outra que escolhesse cruz ou um pau. Já sabiam que o sinal dela era o belisco. A Edites varria o forno e começava a carregar a pá com os pães, que ia arrumando no forno, juntamente com algum tacho com batatas e chicharro, quando lhe pediam. Fechada a porta, era só esperar uns minutos. Aparecia então o Conta-Poias, alcunha posta a um dos filhos do dono do forno, que se entretinha a contar as poias, ou seja, os pães dados à forneira pela cozedura e que ela repartiria com o patrão.
Já em casa, a Mariê do Padece atendia os clientes que procuravam um pão, meio pão ou um quarto. Os pães eram enormes. Talvez dois arrates cada um.
– Ai! Filha, este pãozinho está cum’ó senhor sol! Não digas que está cru!
E as freguesas lá mandavam pesar e levavam o pão que, às vezes, não queriam.
Eu fui muitas vezes cliente da ti Mariê do Padece. Morando ali perto, minha mãe mandava-me lá comprar um pão.
– Vê lá que to dê bem cozido! – recomendava.
Mas com a lanzoíce da Padeça, que bem transmitiu às filhas, sobretudo à mais velha que, em Paris, parece ter conseguido alanzoar uma vietnamita para negociar a loja desta, não adiantava pôr defeitos ao seu pão. Várias vezes minha mãe me recambiava para que mo trocasse por outro mais cozido. Ela trocava, não sem antes me cantarolar:
– Ai, filho! Tó mãe a pôr defeitos neste pãozinho! Mê Deus, ela no ‘stá a ver bem este oiro!
Tínhamos pão em casa para dois ou três dias. Ainda hoje detesto o pão escuro, por mais virtudes que lhe atribuam. Só lembrar-me daquelas grandes fatias, por vezes parecendo borracha na boca, que eu empapava e só ao poder de ameaças engolia!
Nem com toucinho por cima, ou queijo, ou morcela ou farrenheiro. Vá lá, com chouriço o sabor transmitia-se ao pão e lá embarcava melhor.
Pobre Padeça! Morreu o sr. Leitão. Passados tempos ela começou a variar da cabeça. Talvez fosse o que hoje chamamos doença de Alzheimer. Vinha do cemitério e dizia para quem encontrasse:
– Atão no vés? Lá ‘stavam, uns de pé, outros assantados!
Efeito da morte do filho Mandinho, que tinha guardado gado com o pai, emigrara para França e cedo regressara, que trabalho não era para ele. Guardar gado, tudo bem! Era a sua profissão.
Com alguns patacos que trouxe, casou com a Mariê Pirica, comprou o palheiro do Sr. Nacleto mais uma casa à Fonte e montou um minimercado, onde a mulher vendia. Fez-se caçador.
Certo dia, preparou-se para passar por baixo duns arames farpados ou subir uma parede, apoiado na espingarda. Em má hora o fez. A espingarda disparou e atingiu-o mortalmente. Acabou-se a guarda do gado, os trabalhos em França e também a bóvidê em Quadrazais!
Não foi o primeiro caso de morte com espingarda que disparara sem intervenção do dono.
Há muitos anos, aí pelos anos cinquenta, foi o Meguel Carrapatinho com a burra para o Alcambar com a mulher e os filhos, inclusive um ainda pequeno, que não havia quem tratasse deles nessa época. Atou a burra a um carvalho, onde também dependurou a espingarda, que o acompanhou, não fosse necessário usá-la. Vai a mulher e família trabalhar as suas terras, ficando o mais pequeno deitado à sombra do carvalho. O malvado burro, não sei se a coçar-se no carvalho, toca na espingarda, deita-a ao chão e esta, imprudentemente carregada, dispara e atinge mortalmente o menino.
O Meguel também não tardaria muito a segui-lo. Uma pneumonia acabou com ele, como acontecera com o meu avô Zé Meguel, falecido com o mesmo mal ainda novo.
Queixamo-nos dos cuidados de saúde de hoje. Comparados com os dessa época, parece que estamos no paraíso! Pelo menos já quase não se morre tão facilmente com uma pneumonia.
Notas:
Alanzoar – adular.
Arrate – arrátel.
Assantados – sentados.
Atão – então.
Bóvidê – boa vida.
Cum’ó – como o.
Edites – Edite.
Entrepicar – implicar com alguém.
Fanega – medida de 4 alqueires.
Fintar – levedar.
Lanzoice – adulação.
Loije – loja; baixos da casa.
Malho – machado.
Manal – Manuel.
Mandinho – diminutivo de Amândio.
Mê – meu.
Meguel – Miguel.
Nacleto – Anacleto.
No – não.
Poia – pão que se paga ao dono do forno pela cozedura.
‘stá, ‘stavam – está, estavam.
Tender – preparar o pão para o levar ao forno.
Tó – tua.
Vés – vês.
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«Histórias de quadrazenhos», por Franklim Costa Braga
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Maio de 2014)
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