São tantas e tais as mudanças na vida das gentes do Interior, especialmente da Raia e mormente em Quadrazais, que vale a pena recordar como era a vida em Quadrazais nos primeiros sessenta anos do século passado e estabelecer uma comparação com os anos que se seguiram, sobretudo os actuais.

I – Organização da sociedade e importância nela
Antes: Podemos dizer que os quadrazenhos se organizavam socialmente e hierarquicamente do seguinte modo:
1 – O abade – Designação para o pároco das igrejas de São João (Sabugal), Quadrazais e Murganheira (Vila Boa), era a pessoa mais respeitada. Era ele o representante da Igreja Católica, numa comunidade quase toda católica praticante, sendo ainda ele o elo com o bispo da Guarda. Dizia missa todos os dias, em geral por alma de algum defunto, por encomenda, presidia às procissões e festas religiosas, pregava aos Domingos, baptizava, casava, fazia os enterros, com missa de corpo presente e ofícios, se os familiares do defunto tinham posses, ou os ofícios ficavam para mais tarde. Dava a Extrema Unção em casa do doente, onde o confessava, a seu pedido, confessava, ministrava a catequese juntamente com as catequistas e até tirava o aflar (folar) em certas páscoas. Às tardinhas rezava o terço na igreja.
2 – Os professores primários – Eram respeitados por serem eles que ensinavam e educavam os filhos dos quadrazenhos. Muitos eram os que frequentavam a escola. Lembro-me que, no meu ano, fomos fazer o exame da 4.ª classe ao Sabugal vinte e quatro rapazes. Merece destaque especial o professor Evaristo e a esposa professora Ester, que permaneceram em Quadrazais durante 18 anos.
3 – Os que tinham o Dom – Isto é, que eram tratados por senhor, talvez que em tempos idos fossem tratados por Dom, como ainda acontece em Espanha. Daí a expressar «Ter o Dom». Eram, em geral, as pessoas mais ricas e que davam mais trabalho aos que andavam a dia. Eram eles: o senhor Nacleto e irmão Sr. Zé Jaquim e respectivas esposas, os Vieiras: Sr. Zezinho, Sr. Alexandre e Sr. Antoninho; alguns Moiras – Sra. Albertina, Sra. Marquinhas, Sr. Augusto e Sr. Zezinho. Alguns Saladas – os filhos da Sra. Luísa: Sr. José Simão, Dona Berta e Dona Laura; Sr. António Salada; alguns Pinharanda e Gomes- Sr. Jaime, Sr. Alberto, Sr. Amândio. Também tratavam por senhor algumas pessoas de fora, como o Sr. António Augusto e o Sr. Mateus.
4 – O presidente da Junta da Paróquia – Embora eleito pelos quadrazenhos e apesar de algumas questiúnculas sempre que iam contra os interesses deste ou daquele, mereciam o respeito dos quadrazenhos sobretudo quando «puxavam para a terra», isto é, faziam obras de interesse. Foi o caso do Manel Zé Saloio, que mandou calcetar a maioria das ruas, levou a luz eléctrica para a terra e alargou a estrada para o Sabugal e a mandou alcatroar, entre outras obras de relevo. Por isso, teve direito a que fosse dado o seu nome a uma das ruas principais da aldeia. Era o presidente que tinha direito a falar com os da Câmara do Sabugal.
5- A GNR – Só foi para lá nos anos sessenta e saiu de lá nos anos oitenta. Era respeitada enquanto autoridade e incutia receio por poder multar alguém, mas também porque impunha o respeito e prendia desordeiros.
6 – O Regedor e seus cabos tinham um certo respeito da população, apesar de serem escolhidos por ela. O respeito era maior quando aqueles levavam o cargo a peito e conseguiam evitar desordens ou acabar com elas. Era uma instituição que já vinha da Idade Média.
7 – O carteiro – Era respeitado por ser a pessoa que dava novidades a quem esperava por cartas. Lembro-me de ter o correio o Sr. Zé Simão, embora a distribuição fosse feita pelo Henriques ou pelo Mário Salada. Passou depois para o Sr. António Augusto (o Paposeco), embora fosse o Tó Bicho que fazia a distribuição.
8 – Os donos de comércios – ti Barreiro, Manel Zé Saloio e ti Pinheirinha) mereciam o respeito sobretudo dos que faziam compras a crédito e os podiam ajudar.
9 – Os ambulantes – Eram respeitados por terem vencido na vida, poderem dar trabalho a muita gente e até poderem emprestar dinheiro a alguns na terra ou no Ozendo e Torre, como foi o caso do ti Quim Braga. Mas também eram invejados por muitos pelo seu sucesso. Muitos eram os ambulantes: o ti Quim Braga e filhos Quim, Tó e João; os Soares: Zé, Orlindo e Bráulio; os Ginjos: pai e filho Manel Zé; o Zé Réqué e filho Leonel; o Manel Domingos; o Abel: pai e filho; o António Augusto Restelo e filho; o João Braga e genro Victório; o Nascimento e filho; os irmão Cardosa-Zé e Tó; os irmãos Domingos-Tó e Quim; o Comaites, o Mas…Mas, o Simão Ferrador e filho, os Bedos- Aquiles e Zé Manel, o Zé Ferro, o Sordo, o João Xastre, o Zé João e uns quantos mais. Eram eles que, em geral, eram chamados a pegar no pálio nos Domingos Terceiros e noutras procissões, o que atesta o respeito que lhes votavam.
10 – Os patrões do contrabando – Eram respeitados por viverem melhor que a maioria das pessoas e darem trabalho a muitos que iam buscar os carregos a Espanha. Também tinham alguns invejosos pelo seu sucesso. Por isso, às vezes eram alvo de acusos. Destacavam-se os Carvalhas-Manel Zé e Gé, o Manel Jaquim Meirinha,o Chanas, as Nanas, os irmãos Sedas-Zé Manel e Manel, o Manel Zé Bô, o Gé Selada, a Bajé do Mário e alguns mais.
11 – Os donos de tabernas – Também mereciam algum respeito porque tinham uma vida mais folgada e sempre podiam oferecer um copinho a algum mais pobre. Taberneiros eram o Perricho, a ti Nazaré, a ti Luisinha, o Manal, o Candajo, o Nano, o Balhé Selada, os Cordeiros-Zezinho e Zé Manel, o João Moira e o Nascimento (depois de ficar aleijado de uma mão).
12 – Os estudantes – De quem os pais se orgulhavam, por serem os futuros professores e doutores e terem conhecimentos superiores aos da maioria da população. Estudaram: o Hermoges, o Filinto, que viria a ser médico, o Juvenal, que viria a ser veterinário, os filhos do Sr. Alexandre-José e João, que viriam a ser médicos, o Evaristo Vieira e o Vladimiro Novais, que viriam a ser professores primários, os filhos do ti Barreiro-Zé Manel e Déi, que seriam professores primários juntamente com os filhos do Tó Lourenço-Fernando e o Lourenço, e o Maneco, os filhos de Chau-Zé Manel e Octávio, que viriam a ser advogados, a Suzete, filha da Dª Berta, que viria a ser médica. A começar nos finais dos anos quarenta e nos anos cinquenta foram estudar para os seminários de Vila Viçosa-Évora, Tortosendo-Fátima, Carvalhos-Porto, Fundão-Guarda e Beja cerca de 22 rapazes quadrazenhos, que vieram a formar-se em diversos cursos superiores.
13 – Os profissionais – alfaiates, costureiras, barbeiros, carpinteiros, pedreiros, caliadores (caiadores), ferreiros, sapateiros, moleiros, forneiros, albardeiros, fazedores de crivos e peneiras, serradores, carvoeiros, capadores/amoladores, tosquiadores, profissões, em geral, exercidas por gente de fora, já que o quadrazenho não gostava delas.
Alfaiates-eram o Zé Vinhas, o Manel da Trindade, o Ratatau e o Manel no(não) casa cá.
Costureiras – eram a Srª Marquinhas e a Glória do Ganito.
Barbeiros – eram o Ferreirinho e o Manel Zé Chibo.
Carpinteiros – eram o Sá velho e filho Augusto, o Jaquim Ramos e filho, O Rambóia e filho Aires, o João da Bivinda e o Ranilhas.
Pedreiros – eram os Casados-Manel João e filhos Zé e Ismael, o Zé de Avelar, o Bolarico e o Marques.
Caiadores – eram o Orlando, do Soito, e o 46, de Ramalde.
Ferreiros – eram o Sr. Mateus, o Armando Charavilha, conhecido por Armando Ferreiro, e o Magildro.
Sapateiros – eram o Tozinho, o Zé Maria, o Carrapatinho, o João Forneiro e o João Coxinho.
Moleiros – eram o Domingos Ferro, o Belmiro Soitenho e o Narciso.
Forneiros – eram o César e a mulher Edites no forno de cima e a Luísa Pancadas no de baixo.
Albardeiro – era o Geraldo.
Fazedor de crivos e peneiras- era o Tó Presas.
Serradores, carvoeiros, tosquiadores e capadores/amoladores – eram, geralmente, pessoas de fora que vinham em determinadas épocas a Quadrazais fazer trabalhos específicos. Não quer dizer que não houvesse quadrazenhos que fizessem alguns desses serviços. Carvoeiros iam de Malcata para o Alcambar. Mas também houve alguns quadrazenhos que ficaram com a alcunha de fornicos. Os tosquiadores vinham do Campo na Primavera tosquiar as ovelhas na loge do Piroco, com tal primor que ficavam com o velo inteiro na mão. Serradores eram também o Rambóia e o Ranilhas. Um subia para o cavalete onde assentava um dos lados do tronco, previamente descascado, e o outro ficava por baixo e, com grandes serras, cortavam o tronco pelos riscos feitos por um cordel comprido embebido em tinta azul que, esticado, faziam cair sobre o tronco. Os lados do tronco davam origem aos costaneiros.
Os capadores/amoladores – eram galegos que se faziam anunciar pelo toque característico de uma gaita no Inverno, altura em que se capavam os porcos.
14 – Os lavradores – Davam jeiras, ganhando o dobro do trabalho por dia. Por isso viviam melhor. Mas também havia alguns que só trabalhavam para si-próprios. Acarretavam pedra de cantaria para a construção de casas ou outra pedra. Levavam o estrume para os campos, acarretavam o pão para as eiras e a palha das malhas. Também acarretavam lenha e cepas. Lavravam e faziam sementeiras. Lavradores eram o ti Jaquim de Rendo, o Cabucho, o C’stantino, o Zé Manel Mocho, o Manel Ruvino, o Francisco Ruvino, o Manel António Diogo, o Manel Barreiro e alguns habitantes das quintas.
15 – Os trabalhadores – andavam a dia. Arrancavam cepas, cavavam as vinhas e deitavam-lhes as caldas e o enxofre, malhavam o pão, deitavam os poços com os cambos e faziam muitos outros trabalhos duros.
16 – Os alugados – Traziam os carregos do contrabando da Espanha para Quadrazais, Cerdeira ou Covilhã. Apreciavam-se os mais velozes e possantes, já que teriam de transportar uns 20 a 30 quilos às costas. Por cada noite ganhavam uns quarenta escudos, o dobro do trabalho de um dia no campo ou noutra actividade.
17 – As mulheres – Faziam o trabalho de casa, a comida, lavavam a roupa, tratavam dos filhos e ainda ajudavam os maridos no trabalho do campo ou faziam-no elas sozinhas. A dia destarroavam cepas, espergiam estrume, sachavam batatas e milho e arrancavam as batatas, regavam, etc.
18 – Os desprezados – Nascidos com algum grave defeito físico ou mental, ou caídos na desgraça, eram o alvo da chacota da canalha.
Parabéns prezado amigo por tamanha sabedoria e querer partilhá lá connosco . Até breve .