De famílias que têm o dom, era tratado por Sr. António Selada. Pessoa culta, que lia os jornais, privilégio só de mais duas ou três pessoas, entre elas o João Lucas, interessado na política, num tempo que nem rádio tinham e muito menos televisão, fazia a diferença na aldeia por estar a par do que se ia passando no país e fazer figura perante qualquer amigo com que conversasse ou cliente que lhe visitasse o comércio, que teve primeiro à praça, na casa onde mais tarde morou o padre Luís, na loja da ti Perricha mais tarde.

Dada a sua condição de senhor e da cultura de que gozava, natural seria que a moça mais bonita ou prendada fosse por ele conquistada, não obstante ter a cara ratada das bexigas, origem da sua alcunha. Em terra de cegos, quem tem olho é rei!
Foi o que aconteceu com a menina Prazeres, filha do abade Aragão, o padre velho, e da criada, que já trouxera do Jarmelo, onde paroquiara.
A menina Prazeres era a rapariga mais bonita da terra, de cabelos loiros compridos, que lhe chegavam aos calcanhares. Não admira que o Cara Ratada lhe tivesse deitado os olhos e nele tenha crescido a lascívia. E começou a dizer-lhe coisas bonitas quando ia à sua loja, seduzindo-a com as mais bonitas palavras.
Quem não estava pelos ajustes era o pai, o já velho abade Aragão:
– Não quero o Cara Ratada.
O abade conhecia o interior das pessoas, não fosse ele confessor de há longa data e, certamente, bom psicólogo por método experimental, que a longa vida o deve ter ensinado os seus segredos.
De pouco valeu a oposição do pai, a quem o Cara Ratada espreitou uma tarde em que ele regressava do Sabugal no seu cavalo. Fê-lo cair do cavalo e amarrou-o a um carvalho no lameiro que foi do Tó Neceto, no entroncamento do caminho velho com a actual estrada do Sabugal, no início da Eirinha. Cai a noite e o abade Aragão não aparecia em casa. Vão procurá-lo e dão com ele amarrado.
Talvez que este acto o fizesse temer o Cara Ratada e, porque a menina Prazeres estava encantada com o seu palavreado sedutor, lá consentiu no casamento e até deve ter sido ele a abençoar a união.
Mas os seus palpites cedo se tornaram realidade. O Cara Ratada maltratava constantemente a mulher, puxando-lhe os cabelos e fazendo-a rodopiar no chão, sem que ela esboçasse um grito. Tudo suportava com resignação, a ponto de algumas mulheres a considerarem santa.
Consumida pela dor, deixou de comer e a morte levou-a cedo.
Ao Cara Ratada não havia morte que o ceifasse. Gabava-se de ir banhar-se na ribeira, mesmo nos dias gelados de Janeiro, o que lhe dava grande robustez. Casou em segundas núpcias com a Dona Laura. Não sei se também a maltratava. Pouco saía de casa. Filhos nem a menina Prazeres, nem a Dona Laura lhe deram.
Morta a Dona Laura em Lisboa, para onde fora tratar-se junto da irmã Berta, o Cara Ratada viu-se sozinho, com as mazelas da vida, para o que frequentava as termas. Teria tido o descaramento de ir para a casa do ex-sogro no Cró?
Sem ninguém, pede ao António José, da Torre, que olhe por ele, certamente com a promessa de lhe deixar o que tinha. O António José, conhecedor dos bens que poderiam vir a ser seus, acedeu ao pedido, acompanhando-o até que morreu de cancro.
E os bens do Cara Ratada lá passaram para o António José.
Será que alguém lhe põe alguma flor na sepultura no dia dos mortos?
É o desprezo para quem maltratou a maior beldade da terra. Cá se fazem, cá se pagam.
Que vá agora tentar seduzir São Pedro que o deixe entrar no céu. Duvido que São Pedro lhe abra a porta porque ali a cultura é baseada noutros padrões linguísticos e de obras feitas. Que se banhe agora no Lago Estígio para arrefecer o ardor do inferno em que a sua consciência se deve debater.
A menina Prazeres, porém, ao vê-lo do Céu, bondosa como era, deve lançar-lhe olhares de perdão que ele não merecia.
Notas:
Neceto – Aniceto.
Selada – Salada.
Adenda:
Informou-me o Isidro Candeias, da Torre, que a personagem principal desta história faleceu no Sabugal, em casa do Sr. José António Augusto (Zé António) e foi levado para Quadrazais. Faleceu intestado, já que o Zé António adiou sempre a ida de notário a sua casa com um «deixe estar, havemos de tratar disso». Os herdeiros foram os sobrinhos do Sr. António Salada. O Zé António apenas pediu para ficar como lembrança com a pistola do falecido e com um relógio de parede. Mais tarde comprou aos herdeiros uma tapada e duas vinhas do falecido.
O SEU A SEU DONO
O autor da presente resposta é referido na Adenda à Nota supra, do Ilustre Quadrazenho Franklim da Costa Braga, acerca do Sr. António Salada, de Quadrazais, cuja Nota contempla, entre outros, relações de acolhimento ao mesmo pelo Sr. José António Augusto, da Torre, então residente no Sabugal.
A referida Adenda procura corrigir o quadro negro, traçado na Nota, sobre o Sr. José António.
Entende o aqui Respondente que a correção, valendo o que vale, fica muito aquém do desagravo que entende devido ao Sr. José António, que Deus haja e, também, aos familiares do mesmo, que são bastantes e muito dignos da honrosa tradição do seu ente querido, que o aqui Respondente entende corresponder, em certa medida, ao constante da mensagem que oportunamente enviou ao Amigo Franklim, mas que, segundo lhe foi comunicado pelo mesmo, já não pôde ser contemplada na Nota, constante do Livro, a publicar muito em breve.
Como forma de repor a verdade dos factos, então comunicados e de modo a minorar os efeitos do que de menos honroso é atribuído ao Sr José António, entende o aqui Respondente, ser de justiça a publicação, que a seguir se transcreve, da referida Informação oportunamente por si prestada ao Ilustre e festejado Autor, Dr Franklim da Costa Braga.
“O Senhor António Salada, de Quadrazais, na década de 60 do século passado, fez amizade e encontrou apoio junto de um benquisto homem da Torre, de nome José António Augusto, conhecido por Zé António.
A altura, o Sr. Zé António já havia deixado a atividade da pastorícia, do negócio das cabras e ovelhas, mais tarde também o negócio de porcos, este em parceria com o António Lourenço, de Quadrazais e fixara-se no Sabugal, na Avenida das Tílias, por haver comprado ao Sr. Joaquim Sapinho, também conhecido por Joaquim das Iscas, um conjunto imobiliário, de habitação no primeiro andar e de taberna no rés.do-chão, ainda com talho ao lado.
O Sr. Zé António, mudado, de armas e bagagens, da anexa Torre para a Vila do Sabugal, desenvolveu ali as suas atividades de pastorícia, Taberna de Vinhos e Petiscos, Talho e, ainda e sobremaneira, foi o “pater familias” de um rancho de nove filhos, que singraram na vida e que, na sua quase totalidade, se encontram a trabalhar ou estabelecidos na agora cidade do Sabugal.
Com a referida mudança, também muitas pessoas da Torre passaram a ter um local de apoio na sua casa no Sabugal e a poder beneficiar da sua integração, conhecimentos e aceitação junto da comunidade sabugalense.
Dentro do quadro, que antecede, não custará compreender e aceitar a amizade com o Sr António Salada, de Quadrazais e o apoio, quer ao mesmo quer a sua mulher, pois que uma das filhas do Zé António chegou a viver em Quadrazais, prestando apoio a Esposa do Sr. António Salada, enquanto este recebia o necessário apoio e cuidados em casa do Amigo Zé António, no Sabugal.
O Sr. António Salada veio a falecer em casa do Zé António, tendo o corpo sido levado para Quadrazais, aonde foi sepultado.
Enquanto vivo, vezes sem conta pediu ao Zé António que mandasse ir o Notário lá a casa, pois que queria contemplá-lo em testamento.
Se muitas vezes tal pediu, igual número de vezes viu não satisfeita a sua pretensão, pois que o Zé António lhe dizia sempre: “deixe estar, havemos de tratar disso”.
Morreu, pois, intestado, tendo sido seus herdeiros os seus sobrinhos.
O Zé António manifestou aos sobrinhos a vontade de ficar com um relógio de parede e com a pistola do Tio, como lembranças do mesmo.
Além dos dois referidos objetos, o Zé António comprou aos sobrinhos herdeiros uma Tapada e duas vinhas, que os mesmos haviam herdado do Tio.
Algueirão, 4 de fevereiro de 2016
Isidro Candeias”
Algueirão, 30 de maio de 2016
Isidro Candeias