São tantas e tais as mudanças na vida das gentes do Interior, especialmente da Raia e mormente em Quadrazais, que vale a pena recordar como era a vida em Quadrazais nos primeiros sessenta anos do século passado e estabelecer uma comparação com os anos que se seguiram, sobretudo os actuais.

Prefácio
As mudanças foram provocadas sobretudo pela emigração em massa para França e outras terras da Europa, de Angola, Moçambique ou Brasil. Basta ver que os 2.720 habitantes de Quadrazais em 1950, tinham diminuído para 1.987 em 1960. Em 1981 já eram apenas 709, em 1991 eram 581, em 2001 só já eram 473 e em 2011 apenas 457. Isto é, de 1957 a 2011 Quadrazais perdeu 2.263 pessoas, na sua maioria por terem emigrado, apesar de algumas terem falecido sem terem sido substituídas por novos nascimentos.
A forte diminuição da população levou ao abandono das terras, ao fim das regas com a água dos ribeiros que provocavam, por vezes, barulhos e mortes pela disputa da vez para regar, ao acabar com vacas, burros e, em grande parte, com ovelhas e cabras e ao desaparecimento de profissionais, como: sapateiros, alfaiates, barbeiros, ferreiros, tosquiadores, etc.
Da emigração veio mais dinheiro para gastar na educação, nos consumos básicos e também nalgumas extravagâncias. A maior educação é também um factor da saída dos novos para a Guarda, Covilhã, Lisboa ou Coimbra, locais para onde os filhos tiveram de ir estudar.
Os hábitos de higiene, de fazer e conservar a comida, de aquecimento, de passatempos e outros mudaram radicalmente com a introdução da energia eléctrica e com a canalização de água e esgotos. Os resíduos domésticos passaram a ser recolhidos pela Câmara Municipal. As ruas são varridas. Já não há currais com estrume a céu aberto.
No que restou da lavoura houve também grandes mudanças. Introduziram-se alfaias agrícolas, como tractores, que ajudaram a suprir a falta de mão-de-obra e a aligeirar a dificuldade dos trabalhos.
As deslocações também se tornaram mais fáceis e mais rápidas com a aquisição de automóveis e carrinhas, que suprem as camionetas da carreira. Estas andam muitas vezes vazias.
Já não se divide uma sardinha para dois ou mesmo três. A comida agora é abundante.
A maneira de se vestirem também se alterou, com melhores roupas e em maior quantidade, acabando o aspecto miserável de muitos.
As habitações passaram a não ter animais nos baixos e a ter um aspecto mais limpo e moderno e mais confortáveis. As antigas casas exíguas deram lugar a vivendas com garagens e jardins, embora algumas não tenham respeitado o plano da região.
Até na linguagem as mudanças são visíveis, quer quanto ao Português, quer quanto ao uso da língua francesa, que muitos usam para mostrarem que sabem, outros por desconhecimento do termo português, mesmo com os filhos, não aproveitando para lhes ensinar o Português. Mas é também corrente a mistura de termos portugueses e franceses, como vacanças, o septième (para dizer a missa de sétimo dia), a pubela, o marché e tantos outros. A própria Gíria quase foi esquecida.
A drástica redução de população acabou com a organização social tradicional da aldeia.
O padre já não é residente. Quem pede a bênção ao padre ou mesmo aos pais? Acabou o ensino da doutrina. Quem reza ao Anjo da Guarda antes de se deitar?
– Acabou o regedor e seus cabos.
– A emigração levou também os ambulantes, que ganhavam mais em França. Na onda foram o Finote, o Zé Ferro, os Soares (Ginjos) e os Soares dos Santos –Tó e Orlindo, os Bedo-Aquiles e Zé Manel, os Cardosa-Zé e Tó, o Dionísio e outros. Alguns dos antigos estabeleceram-se nas terras por onde andavam, como meu tio João em Fronteira e o Leonel em Torres Novas.
– Acabaram, praticamente, os jogos tradicionais das crianças- a choina, o bicho, o corcho, o rócanacó, o ferro; e dos rapazes- a barra, o pulso, a raoila. É que, os poucos residentes em idade de ter filhos só têm um ou dois filhos, ao contrário de antigamente em que a média era de cinco ou seis, embora morressem muitos. Agora só os ciganos têm quatro ou cinco, mas não conhecem as tradições e jogos da aldeia.
– A entrada de Portugal na União Europeia em 1986 acabou com o contrabando, fechando as alfândegas fronteiriças, pois já se pode levar e trazer de Espanha o que se quiser. Os patrões do contrabando deixaram de vir abastecer-se à terra, a ponto de até venderem as casas que nela tinham. Por Coimbra ficaram os Carvalhas e outros já falecidos, que até os ossos aí deixaram. Por Lisboa ficaram a Bajé do Mário e filhas. Pela Marinha Grande ficaram os Sedas.
– Os antigos trabalhadores por conta de outrem passaram a ter mais dinheiro que os antigos patrões, que os donos de comércios e tabernas e acabou essa diferença social entre eles.
– Quebrou-se a rotina do dia-a-dia da aldeia.
Vinham os capadores galegos com as suas flaitas típicas consertar guarda-chuvas e capar porcos.
Vinham de S. Miguel d’Acha os consertadores de pratos com um aparelho que girava para furar pratos e juntar as partes com agrafos (veja-se a miséria desses tempos!) por cujo trabalho pediam cinco tostões e um bocadinho de pão.
Vinham os latoeiros, sabe-se lá donde, para deitar pingos nos pratos e tachos de alumínio ou consertar caldeiros.
Vinham os compradores de peles, de ferro velho, de cornachos e sei lá de que mais.
Vinham os comediantes com os seus palhaços.
Vinham os retratistas pela Santa Eufêmia com aquelas caixas mágicas e um balde de água. Por essa altura vinham também os vendedores de amêndoas e de doces que púnhamos ao pescoço, a que chamávamos um relógio. Vinham os vendedores de melancias enormes que ocupavam um grande alguidar e que comíamos às flaitadas.
Vendiam-se tremoços no largo do balho em cartuchos de jornal por um ou dois tostões.
Vinham os ciganos de quando em quando. Vendiam burros. Dormiam ao relento no Verão e nalgum palheiro no Inverno. Por vezes apoderavam-se da alpendrada da capela de Santo António, onde também se jogava ao castelo, com três castanhas unidas, pelo que os mordomos a destruíram. Comiam tudo. Até galinhas recém-mortas, que desenterravam. Não iam à escola, até pelo seu carácter nómada.
Hoje os ciganos são aí residentes, com boas casas. Já não vendem burros, mas sim roupas e calçado nas feiras e ainda madeiras ou lenha para as lareiras. Um deles, o João Cigano, até já comprou diversos terrenos para plantar mata, certamente com o objectivo de receber subsídios. Comem como os outros quadrazenhos e alguns filhos já vão à escola.
Corriam pela serra os contrabandistas de carrego às costas, fugindo dos Guardas-Fiscais.
Chiavam os carros de vacas puxados por animais pachorrentos.
Se houve muito de bom nestas mudanças, também houve aspectos negativos. Perdeu-se a cultura, abandonaram-se os campos, os matos invadiram terrenos de cultivo, agora covil de javalis, caíram as casas das quintas e as paredes das cercas, roubaram as pedras das paredes e eiras, desapareceram os animais e os carros de bois, desertificou-se a aldeia.
As festas têm menos gente e é difícil encontrar mordomos para alguns santos.
Não sei como resistiu o ter ainda mordomos para os santos principais, cujas festas continuam a ser feitas, ainda que tenham de vir de França por uns dias para as preparar. Mesmo assim, anos houve em que a festa de Santa Eufêmia só teve um mordomo.
Em 2016 não houve mordomos do Senhor, mas as cerimónias da Páscoa foram organizadas por dois elementos da Comissão da Igreja. O Senhor Santo Cristo continua com a mesma mordoma de há anos, a Maria Sona, apesar dos seus 94 anos. E ainda acumula servir ao Sagrado Coração de Jesus e não sei a que santo mais. Tudo por falta de gente que sirva. Por isso, também já não saem todos os santos em procissão no dia de Páscoa, mas tão só o Santíssimo. A igreja foi renovada, nem sempre da melhor maneira. O tecto em madeira, como na igreja de São João no Sabugal e outras, foi substituído por gesso. Adquiriram novas imagens de santos, oferecidas por quem tinha especial devoção por este ou aquele santo, como São João Evangelista, oferecido por meu tio João, para além dos pastorinhos colocados no altar das Almas e de uma enorme cruz no alto da torre do sino, oferecida pelo Julinho.
Não há latoeiros, nem capadores, nem consertadores de pratos, nem compradores de peles de coelho, cabrito, ferro velho ou cornachos, nem comediantes, nem retratistas. Já não há balhos nem tremoços para vender. Já não há carregos a salvar. Já não há carros de bois, que poderiam estragar o alcatrão com seus rodados de ferro.
Apesar de muito difíceis, que saudades desses tempos já idos da minha infância!
Leave a Reply