No 205º aniversário da Batalha do Sabugal, acontecida a 3 de Abril de 1811, e quando a Santa Casa da Misericórdia do Sabugal comemora 500 anos, publicamos a comunicação proferida no dia 28 de Janeiro de 2016, na apresentação das iniciativas que evocarão o quinto centenário da Instituição.
Falar das invasões francesas, acontecidas no início do século XIX, é evocar um dos períodos conturbados da história de Portugal e certamente um dos momentos mais negros para as populações que sofreram os excessos da guerra. O Sabugal, que escapou à fúria da horda invasora da primeira e da segunda ocupação, esteve na rota da terceira ofensiva, comandada por Massena, e na da quarta e última, chefiada por Marmont.
Face à devastação, ao saque e ao sofrimento imposto à população, apenas uma grande instituição esteve à altura para prestar aos mais afectados a ajuda material e espiritual necessária: a Obra das Misericórdias. Em todo o país onde as atrocidades foram cometidas e as vidas foram arrasadas, as Misericórdias assumiram um papel essencial na assistência, e o Sabugal não foi excepção.
No ano em que se evocam os 500 anos da fundação da Santa Casa da Misericórdia do Sabugal, é de singular importância enaltecer o papel da instituição face aos horrores das invasões francesas.
O SABUGAL NA ROTA DAS INVASÕES
O início da Terceira Invasão
A 27 de Agosto de 1810, o 2.º corpo do exército francês, comandado por Reynier, vindo de Alcântara e Placência pela estrada de Penamacor, ocupou os concelhos do Sabugal, Alfaiates e Vilar Maior, a fim de se juntar ao «Exército de Portugal» comandado por Massena, que acabara de tomar a praça forte de Almeida. Permaneceria aqui durante 15 dias, até 11 de Setembro, data em se iniciou o movimento geral da invasão, rumando à Guarda para daí descer o vale do Mondego e seguir a estrada da Beira.
As passagens de Foy e de Gardanne
Bloqueado pelas inexpugnáveis Linhas de Torres, o exército invasor não conseguiu alcançar Lisboa, acabando por bivacar no Ribatejo. Querendo romper o bloqueio da linha de comunicação à retaguarda e dar a conhecer a Napoleão a sua situação e solicitar reforços, Massena encarregou o general Foy de levar uma mensagem ao Imperador.
Foy partiu à frente de um destacamento de 400 homens, que passaram no Sabugal a 7 de Novembro de 1810, seguindo em marcha forçada.
Chegado a Espanha Foy entrega uma primeira mensagem de Massena ao general Drouet, comandante do 9º Corpo, solicitando auxílio. Drouet encarregou então o general Gardanne de seguir de imediato para Portugal com a sua divisão. A 20 de Novembro de 1810, a coluna de 4 mil homens comandada por Gardanne passou pelo Sabugal, procurando o caminho mais directo para sul. Dormiu mesmo na vila, de onde arrancou para Sortelha, Capinha, Fatela, Valverde, chegando ao Fundão, onde foi alvo de emboscadas montadas pelas milícias de Trant.
Chegando à zona de Abrantes, não logrou juntar-se a Massena, devido a informações erradas que lhe deram a entender que os franceses batiam em retirada, pelo que regressou a Espanha, para junto do seu corpo de exército, o que o implicou uma nova passagem pelo Sabugal a 30 de Novembro, com a sua divisão completamente extenuada e em estado deplorável.
A 31 de Janeiro de 1811, debaixo de chuva e neve, o general Foy, vindo de Paris com a resposta do Imperador à mensagem de Massena, voltou a passar pelo Sabugal, com uma coluna de 500 homens. Terá dormido numa qualquer aldeia do concelho do Sabugal, onde os soldados ocuparam as casas abandonadas pelos habitantes. Mas ao invés de voltar por Penamacor, seguiu por Sortelha, Belmonte, Pêraboa, Ferro, Alcaria, Freixial, procurando caminhos secundários, o que não evitou que fosse impiedosamente atacado no Castelejo por ordenanças portuguesas.
O mesmo general Foy, a 9 ou 10 de Março de 1811, voltou a cruzar o Sabugal, vindo com nova mensagem de Massena para Napoleão, sendo agora apenas acompanhado por 50 cavaleiros, que avançavam dia e noite, parando apenas para ligeiro descanso.
No fim da Terceira Invasão – A Batalha do Sabugal
A impossibilidade em vencer as Linhas de Torres ditou a retirada definitiva das forças francesas que, seguidas de perto pelo exército anglo-luso, regressaram a Espanha. Subindo o vale do Mondego e alcançando a Guarda, Massena encaminhou o seu exército para o Sabugal, tendo por objectivo relançar a invasão pelo Sul.
No dia 24 de Março de 1811, o exército francês ocupava a linha do Côa até ao Sabugal, estendendo-se ainda até Sortelha e Belmonte. Porém Massena, temendo o insucesso do novo movimento de invasão, ordenou a todo o dispositivo o recuo para a margem direita do Côa. Os antigos concelhos do Sabugal, Alfaiates e Vilar Maior estavam literalmente ocupados, quando, no dia 3 de Abril, Wellington decidiu atacar o corpo de Reynier, cujas principais forças estavam acampadas junto à vila do Sabugal, no lugar do Gravato.
A batalha do Sabugal foi sangrenta para os franceses, que perderam 760 soldados, enquanto que os anglo-lusos perderam apenas 162 militares. Ela ditou o recuo definitivo do exército invasor, que no dia 4 de Abril abandonou Portugal.
Não seria contudo o fim da presença de soldados franceses nas terras sabugalenses.
A Batalha de Aldeia da Ponte
A 27 de Setembro de 1811 o marechal Marmont, que havia substituído Massena à frente do «Exército de Portugal», ataca as forças luso-britânicas em Aldeia da Ponte. Chega a ocupar a aldeia, mas no dia seguinte os aliados contra-atacam e retomam a localidade, expulsando os franceses para Espanha.
A Quarta Invasão
A 3 de Abril de 1812, exactamente um ano após a batalha do Sabugal, Marmont entrou com o seu exército em Portugal, tentando tomar Almeida de assalto, no que foi repelido pela milícia portuguesa que guarnecia a praça. Avançou então para norte, passando por Alfaiates e chegando ao Sabugal a 8 de Abril de 1812, onde estabeleceu o seu quartel-general. Daqui enviou sortidas a Penamacor, Belmonte, Idanha-a-Nova, Covilhã e Fundão, chegando a sua vanguarda a Castelo Branco.
A 14 de Abril a cavalaria francesa atacou a milícia portuguesa que estava na Guarda, fazendo 200 prisioneiros.
Face à perseguição do exército aliado, que veio do sul em socorro da Beira, Marmont levantou o acampamento no Sabugal e regressou a Espanha a 24 de Abril.
Esta última campanha francesa em solo português teve um intuito claramente punitivo, sendo especialmente penosa para as populações que foram alvo das maiores atrocidades.
Chegaram porém ao fim as invasões francesas em Portugal, e dentro em breve as pessoas puderam refazer as suas vidas.
AS ATROCIDADES PRATICADAS PELOS FRANCESES
Foram abundantes as selvajarias levadas a cabo pelos franceses sobre as populações civis no período das invasões. A passagem da horda militar representava para os aldeões a chegada de uma calamidade.
Mas que razões assistiram aos franceses para provocarem as sucessivas destruições e perpetrarem tamanhos sofrimentos?
Massena, logo que tomou a Praça de Almeida, assinou e difundiu uma proclamação aos portugueses, redigida pelo general Marquês de Alorna que estava integrado no exército invasor. O marechal exortava o povo a receber bem os soldados de Napoleão porque estes vinham como amigos e não como vencedores. Os ingleses sim, eram os verdadeiros inimigos de Portugal por querem «introduzir em Portugal objectos manufacturados nas suas fábricas e de vos tornar tributários deles». O imperador dos franceses iria garantir a prosperidade dos portugueses, pelo que estes deveriam acolher bem os seus soldados. «Ficai tranquilos nas vossas casas, dedicai-vos aos vossos trabalhos domésticos», concluía o texto assinado por Massena que procurava sossegar o povo.
O marechal avisou ainda os seus soldados de que seriam severamente punidos se ousassem inquietar sem motivo os habitantes das terras por onde passassem.
O invasor só tinha aliás a ganhar com o estabelecimento de uma relação afável com o povo, de modo a que fosse recebido pacificamente.
Só que o exército invasor era composto por dezenas de milhares de bocas esfaimadas que queriam ser alimentadas a todo o custo. Não havia trem de mantimentos – o transporte das bocas de fogo, da pólvora e das equipagens não deixava espaço para as provisões alimentícias. Os poucos caixões de biscoito eram uma reserva estratégica a que se recorreria em caso de extrema necessidade, pelo que o sustento tinha que ser garantido nas terras por onde o exército passasse, dentro do sistema de aboletamento e de requisições que à época era habitual, fosse em manobras de instrução ou em movimento de campanha.
Era norma os oficiais do exército imperial aboletarem-se em solares e palácios, enquanto a soldadesca ocupa as casas do povo ou conventos e mosteiros, se os houvesse no caminho.
Porém a estratégia de defesa executada por Wellington, com a total concordância do ministro da Guerra Miguel Pereira Forjaz, passara pela intimação aos povos da Beira para que, face à aproximação dos invasores, abandonassem as suas casas e destruíssem tudo o que não pudessem transportar, deixando os franceses na penúria. O povo, temente à acção do invasor, procedia conforme as ordens que recebera, destruindo e queimando os mantimentos, soltando os animais domésticos, e fugindo para o campo ou para a serra, onde permaneciam até que a horda invasora se tivesse afastado.
Face a esta política de «terra queimada» os franceses viram-se obrigados a vasculhar as casas abandonadas, procurando as provisões escondidas. Tudo o que fosse encontrado era surripiado, incluindo as igrejas e capelas, muitas delas ocupadas e transformadas em dormitório ou até em cavalariça. Muitas aldeias ficaram literalmente reduzidas a nada.
Se um pobre camponês fosse avistado, era de imediato detido e interrogado, a fim de indicar onde estavam as provisões para os homens e para os cavalos do exército. Se ficasse em silêncio ou hesitasse em dar as indicações, era sujeito a torturas, acabando muitos deles mortos às mãos dos soldados enraivecidos.
Mas não era apenas a questão da carência de subsistências que motivava as atrocidades sobre a população civil.
No sistema defensivo português não existia apenas a tropa regular, ou de linha, formada pelos batalhões ingleses e portugueses que estavam sob o comando directo de Wellington. Numa segunda linha estavam as milícias, tropa fandanga mal fardada, mas possuidora de abundante armamento ligeiro, e comandada por bons oficiais portugueses ou ingleses. As milícias não se enquadravam nas movimentações do exército regular, mas obedeciam ao comandante em chefe, que as dispunha ao longo do país em locais estratégicos dando-lhe missões de corte de comunicações, de actos de guerrilha ou de sabotagem, tendo em vista dificultar os movimentos do exército invasor. Ainda numa terceira linha, havia as ordenanças, forças compostas pelos homens fisicamente capazes que vivessem nas aldeias, que se mantinham às ordens dos capitães-mores, para actos de guerrilha, destruição de pontes, vigilância e intercepção de destacamentos isolados, comboios de forrageadores ou mensageiros do exército francês.
Portanto, para os invasores, todo o português, fosse pastor, lavrador ou jornaleiro, era em potência um soldado inimigo, alguém que a qualquer momento podia atacar e matar. Face a isso, o camponês era maltratado, ferido ou abatido, gerando-se o ódio entre os soldados franceses e o povo, e sucedendo-se os actos de vingança de parte a parte.
O francês não se coibiu pois de destruir e de matar, tudo levando a eito na sua fúria invasora.
A ACÇÃO ESSENCIAL DAS MISERICÓRDIAS
Durante o período das Invasões Francesas, as Misericórdias tiveram uma participação muito activa no campo da assistência, nomeadamente no socorro aos feridos e no enterramento dos mortos, assim como no sustento dos mais pobres e no acolhimento dos órfãos que a guerra gerou.
Fazendo jus ao Compromisso de 1516, as Obras de Misericórdia centravam-se no cumprimento das 14 regras colhidas dos Evangelhos:
Sete espirituais: ensinar os simples, dar bom conselho a quem pede, castigar com caridade os que erram, consolar os tristes, perdoar os que erram, sofrer as injúrias com paciência, rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos;
E sete materiais, ou temporais: remir os cativos e visitar os presos, curar os enfermos, cobrir os nus, dar de comer aos famintos, dar de beber aos que têm sede, dar pousada aos peregrinos e pobres, enterrar os finados.
Face à emergência social, a acção das misericórdias focou-se na execução das obras materiais, com destaque para o cuidar dos feridos e o enterrar dos mortos, o dar de comer aos famintos, recolher os pobres e tratar dos órfãos.
Maria Antónia Lopes, investigadora da Universidade de Coimbra, realizou um estudo sobre o que foi o sofrimento das populações face à terceira invasão, centrada na zona de Pombal e de Coimbra, muito afectada pela devastação. Enalteceu o papel das Misericórdias locais face aos sucessivos sacrifícios impostos com a contínua chegada e passagem de tropas, o consequente aboletamento compulsivo, a imundície acumulada, a escassez de víveres e alta de preços e a consequente miséria que afectou a população.
Face a «tantas e tão extraordinárias necessidades», a Santa Casa da Misericórdia de Coimbra não dispunha dos recursos necessários para acudir sequer às maiores emergências, o que levou os seus dirigentes a afirmarem tratar-se de «uma calamidade incomparável, de que não há memória nos séculos passados».
Essas situações de necessidade absoluta e de ajuda pela única instituição capaz de o fazer, replicaram-se por todo o país. O Sabugal, que esteve constantemente na rota da terceira invasão e ainda sofreu os efeitos directos na quarta, a mais punitiva e atroz de todas, sentiu as mesmas ou até piores necessidades. Muitos dos seus benfeitores morreram e outros ficaram desprovidos de meios para cumprir as obrigações pecuniárias. A própria obra, Igualmente arrasada e espoliada, teve ainda que se reorganizar e reunir recursos para ajudar os mais carenciados.
Paulo Leitão Batista
Dr Paulo Leitao Baptista, há mais informações das passagens das tropas francesas pelo Vale de Lobo (VSP), alem daquelas que são citadas no livro? Se houver mais….adorava saber !! Obrigado, grande abraço, JJC
Fantástica está descrição, na linha do livro publicado sobre este tema, sendo Paulo Leitão Baptista um dos três autores. Os meus maiores elogios !
Obrigado José Jorge Cameira
E um abraço para todos os naturais do Vale da Senhora da Póvoa, uma terra (na altura chamada Vale de Lobo) cujo povo também sofreu muito face às atrocidades das invasões francesas.
Paulo Leitão Batista