Um som metálico libertava-se da corneta amarela, descia o outeiro, sobrevoava o ribeiro e ia ao encontro da aldeia que se acomodava ao dia na encosta nascente do Monte de Santa Bárbara.
Ao Ti Aníbal, mais conhecido pelo «Sardinheiro da Perna de Pau», faltava-lhe uma perna. Caminhava coxeando em passos desequilibrados, espetando na terra do caminho a parte fundeira da perna postiça em forma de funil. A parte que pousava no chão em tudo diferia de um pé humano.
O Ti Aníbal avançava tocando o burro com um bastão de freixo enquanto bradava loucamente:
– É barata mulheres, é barata!
Escassos minutos depois a dupla, sardinheiro e animália, curvavam a entrada da aldeia já em passo retardado. O homem mantinha o sopro na lingueta metálica da corneta até ao limite do seu fôlego. Respirava, já próximo do sufoco, e voltava a vociferar:
– Olha a sardinha barata!
O burro transportava, encordoados no lombo, três caixotes de sardinha submersa em sal grosso.
De quase todas as portas saiam mulheres em corrida miudinha. Traziam nas mãos pratos de louça florida. Abeiravam-se do vendedor, espreitavam os caixotes e questionavam:
– Ei, ti Aníbal, então a sardinha é fresca?
– É boa mulheres. É boa e barata!
O homem não era de mentiras e, portanto, evitava afiançar a frescura da sardinha. Muito simplesmente dizia de si para si:
– No Inverno está sempre fria. No Verão nem fria nem fresca.
O burro, quando parado, sacudia, repetidamente, as orelhas de meio metro. Ao baterem uma na outra produziam um som surdo que se somava aos espirros húmidos do animal. O Ti Aníbal inclinado sobre a perna coxa, equilibrava-se na bengala e ia suplicando por entre a avalanche das mulheres:
– Não mexam. Por favor não mexam. Não mexam que amolecem…
Depois, tentando controlar a actuação das freguesas mais frenéticas, perguntava:
– Quantas quer? Um quarteirão ou meio?
A tia Almira recorrendo à sua veia para o negócio ia propondo:
– Só se trocar as sardinhas por batatas. Olhe que este ano são farinhentas e grossas. Molhadas em azeite nem precisam de conduto.
Mas a ti Augusta mexia e continuava a remexer, ignorando as súplicas do vendedor, como se quisesse apalpar a totalidade das sardinhas até que o Aníbal, já irado, praguejou:
– Raios partam a mulher que machuca tudo e não compra nada.
Só assim conseguiu afugentar a Augusta que partiu zangada. Chegada a casa escoou as batatas, tirou-as da panela e, enquanto lhes ripava a casca fina, ia magicando:
– O diabo enxergue o homem que é esquisito. Que culpa tenho eu de não ter dinheiro para lhe comprar as sardinhas? Mas, ao menos, hei-de lhes ficar com o cheiro!
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista no Capeia Arraiana desde Maio de 2011)
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