Como poderia esquecer um cerimonial que se repetia sempre que o mês de Janeiro chegava ao fim e a safra da colheita da azeitona já tinha dado os seus resultados?!
O Inverno já tinha deixado as suas marcas; que o digam os homens e mulheres quando pisavam a terra encaramelada, que cobria por completo o caminho da Estrada, transformado em ribeiro gelado, quando se deslocavam até aos centenários olivais, que fazem do Casteleiro uma terra farta de bom azeite.
Agora que o azeite já enchia por completo, os ancestrais potes de barro – sinal de boa colheita – era tempo de olhar para a salgadeira, completamente esculpida numa enorme pedra de granito, com uma tampa de madeira, e, fazer a respetiva limpeza do sal velho e alguns couratos – restos do último porco que ali fora depositado.
O porco que habitava aquele curral, repleto de enormes teias de aranhas, estava bem cevado! Aquela pia, também de pedra, bem junto ao portão, serviu-lhe altos repastos durante o ano inteiro. Muitos caldeiros de vianda foram ali depositados! Muitas dores de cabeça passaram pela dona da casa; muitas promessas foram feitas ao Santo António e ao São Bartolomeu para que ele medrasse bem e nenhum achaque o levasse desta para melhor. Afinal, o porco representava a fartura da casa durante o ano inteiro! O povo na sua magna sabedoria, elevava desta forma, a importância do cujo: «Uma missa e um marrano dão-me para todo o ano.»
Uma vez aprazada a família para o dia que marcava o fim de vida do bem cuidado bicho, para alimentar todos os da casa e aqueles que viessem, tudo era cuidadosamente preparado de véspera. Lavar as tripas de véspera com bastantes laranjas (quanto mais azedas melhor) era o melhor prenúncio de um bom enchido – recordo, ainda hoje, aquele cheiro! Recordo ainda as idas à ribeira, local onde se lavavam as tripas digestivas, imediatamente a seguir àquele episódio bárbaro a que todos condescendiam. Sabia-se que este era o fim!
Era preciso repor a salgadeira com toucinho, carne entremeada, orelheira, os mais variados ossos e, claro está, aquele que havia de ser o bom e saboroso presunto.
Em casa, o caniço e o calor da lareira, encarregavam-se de secar o bem condimentado fumeiro: morcelas, chouriças, farinheiras, bufeiras, chouriços de ossos (palaios-buchos) e chouriços do lombo.
– Que casa farta! – «Deus assim o quis. – Enchidos como os meus não há cá no povo, nem em lado nenhum!» – Repetia insistentemente a dona da casa ao olhar para as varas de pinho repletas de tantas coisas boas, que povoavam o tecto daquela cozinha, a pedir pintura há já alguns anos…
Que diversidade de manjares alimentava o dia-a-dia de outrora, de quem trabalhava sol a sol, muitas vezes, com um naco de pão num bolso e um pernil de chouriça no outro!
Que presença gastronómica em momentos festivos, religiosos ou de família!
Que saudades do cheiro e do sabor daqueles enchidos; da cor forte do presunto retirado da salgadeira!
Que pena tudo isto ter desaparecido da minha aldeia!
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«Viver Casteleiro», opinião de Joaquim Luís Gouveia
Meus caros
JFernandes e
António Fernandes
Sei que este texto lhes trouxe à memória muitas recordações de «matanças» que aconteciam nas vossas aldeias. Os atos preparatórios, a festa de família e todo o ritual que envolvia este evento fazem parte de um passado recente, que interessa não esquecermos sendo, por isso, nosso dever transmiti-lo às atuais gerações. É este o meu propósito!
Agradeço os vossos comentários.
JGouveia
Belo texto de memória e recordações. Estou a olhar para a cozinha dos meus Pais e ver essas varas de enchidos. naqueles tempos não havia asais e eram de melhor qualidade que os de hoje.
Caro JLGouveia:
O seu texto transporta-nos para um tempo que hoje já não existe. E esse tempo e modo quão semelhantes eram aos que se viviam na minha e noutras terras vizinhas.
Os tempos são outros mas as terras são as mesmas e as pessoas são cada vez menos.
Lembrar e recordar faz bem a quem o escreve e conta e melhor a quem o lê.
jfernandes