Agora, em Outubro/Novembro era a altura para colher as maçãs das macieiras que o Gervásio tinha nas suas terras. As macieiras eram altas pois algumas vinham já do tempo do seu pai.
No tempo em que o Gervásio era novo, não havia na sua terra grandes pomares. Na verdade, não havia nenhum, como hoje os conhecemos.
O Gervásio e os seus conterrâneos possuíam árvores de fruto, dos mais variados tipos, distribuídas nas suas terras e de preferência sempre em locais que não prejudicassem as restantes plantas. Era vulgar existirem árvores de fruto na parte superior dos dos cômoros, junto das paredes e no caso das vinhas, eram colocadas nos linhóis, alinhadas com as videiras e substituindo no linhol uma videira.
Por isso era normal, no meio de uma vinha existirem várias outras árvores de fruto, para além das videiras (macieiras, oliveiras, pessegueiros, etc) que acabavam por beneficiar do tratamento que era dado à terra das videiras.
Mas hoje, em Outubro, o Gervásio ia colher as maçãs a uma das maiores macieiras que tinha numa das suas terras, depois de em Setembro ter vindimado.
Logo que chegou junto da macieira, desceu o filho do burro assim como os poucos objectos que levava (2 cestos, uma cesta, e uma corda). De seguida, prendeu o burro longe da macieira de forma a que aquele não o ajudasse a colher as maçãs ou mesmo a escolhê-las depois de colhidas, no cesto.
Começou então a colher do chão todas as maçãs a que conseguia chegar, esticando-se cada vez mais, em bicos de pés, à medida que ficavam mais altas.
Subiu em seguida para a macieira de “bravo de esmolfe”, e continuou a colher as maçãs que ia fazendo chegar ao chão com uma corda atada a uma cesta de cada vez que esta ficava cheia. No chão, o filho, despejava a cesta num cesto maior para depois, no final, se carregar no burro e levar para casa.
Em cima da macieira Gervásio ia esticando cada vez mais os braços para conseguir chegar às maças mais afastadas que estavam na ponta dos ramos e ia falando para o filho no chão:
Até parece que é de propósito, na ponta dos ramos estão sempre as maiores e mais vistosas.
Há alturas em que devíamos ter três mãos dizia para o filho que permanecia no chão com a cabeça inclinada para trás para poder olhar o desempenho do pai empoleirado na macieira.
De vez em quando, afastava-se da macieira para a poder ver melhor e ia orientando o pai, informando-o onde estavam as maçãs maiores já que este, no meio dos ramos e da folhagem tinha dificuldade em ver.
Mais para a direita, mais acima, em cima da sua cabeça, ali.. ali… à medida que ia apontando com o dedo e a cabeça inclinada para trás.
Para corresponder ao que o filho dizia, ia colocando os pés cada vez em ramos mais finos, segurando-se com uma das mãos a outros e com a outra ia colhendo os frutos que colocava na cesta que segurava também com uma daquelas duas mãos.
De repente, ouviu-se o estalar dum ramo que se partia fruto do peso que o Gervásio exercia sobre ele quando se esticava para conseguir colher mais um fruto colado na ponta.
Sem tempo para recuar e assim poder evitar a queda, o Gervásio deslizou pelo meio dos ramos da árvore em direcção ao solo, partindo mais uns quantos e estatelando-se no chão, totalmente desconjuntado, ainda com um resto de ramo seguro na mão. O mesmo aconteceu às maçãs da cesta que tinha no braço e que agora ficaram totalmente espalhadas no chão, indo inclusivamente algumas parar perto burro que lhes chamou um figo.
Ficou uns momentos imóvel no chão, com os olhos fechados, iniciando depois uma lenta e faseada retoma da normalidade corporal à medida que o filho com as mãos pequenas o ia abanando e chamando. Primeiro abriu os olhos, depois mexeu dedos das mãos e os braços e logo de seguida sentou-se no chão.
Continuou depois, e quando fazia força na perna esquerda, soltou um som dolorido à medida que soprava o ar que tinha inspirado momentos antes para os pulmões. Estou mal, esta perna doi-me a valer e creio que estará partida ou pelo menos desmanchada, dizia, à medida que, com ambas as mãos se agarrava à perna esquerda na zona do tornozelo.
O filho trouxe o burro para junto do pai e este amparado ao filho, deitou uma das mãos à albarda e tentou elevar-se sobre a outra perna, a esquerda, para subir para cima do animal. Custou, mas conseguiu e acto contínuo começaram os três a viagem para casa, deixando no chão, debaixo da macieira, os dois cestos de maçãs quase cheios.
Claro que o burro teve que voltar mais tarde a buscar os cestos, acompanhado da mulher do Gervásio e do filho com quem ia comentando o pouco cuidado que o Gervásio teria tido.
Em casa, esticado em cima da cama, sentia cada vez mais dores naquele tornozelo, à medida que “arrefecia”. Apesar de lhe ter sido colocado um trapo molhado em água quente e salgada, cada vez inchava mais e já não cabia dentro das botas que usava.
Passaram dois dias e a coisa não melhorava. Naquele tempo coisas destas não eram tratadas pelo médico que por norma não havia perto e, por outro lado era caro. As pessoas eram tratadas através de mezinhas locais e de curandeiros que fruto da experiência às vezes acertavam. Não era o caso do homem de Roque Amador que por regra acertava quase sempre e as pessoas tinham nele uma fé inabalável.
Temos de te levar ao Roque Amador, dizia a mulher enquanto ia ensopando mais um trapo na água salgada que tinha aquecido. Talvez amanhã possamos ir lá ver se homem pode fazer alguma coisa. E lá foram…. e, dentro de pouco tempo, contar-nos-ão a sua viagem.
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«Do Côa ao Noémi», crónica de José Fernandes (Pailobo)
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