O dia 10 de novembro de 2015, o dia de Todos-Os-Votos, vai marcar um pedacinho da História de Portugal. Foi o dia em que o governo caiu. Eu estava lá e, da varanda do Parlamento, vi um país dividido.
De um lado, gente engravatada, bem vestida, que nunca tinha visto por ali a defender fosse o que fosse, gritava «Não à moção de rejeição!». Do outro lado, o carro de som debitava as canções do costume.
É insólito ver estes manifestantes «profissionais» sem gritarem qualquer reivindicação. Apenas se preparavam para celebrar a queda do governo como quem celebra a vitória no local onde travaram, e perderam, tantas batalhas ao longo da XII Legislatura.
À varanda onde me encontro vejo chegar Paulo Portas e Passos Coelho que acenam para os seus apoiantes como quem se despede do país sem emigrar.
Sim, custa ser despedido de qualquer forma, mas mais ainda daquela forma. É irónico pensar que, a bem do superior interesse do défice público, estes dois homens mandaram tanta gente para o desemprego e agora, a bem do superior interesse da vontade maioritária dos cidadãos, sejam eles os despedidos.
Percebo um certo ar conspirativo nas comunicações entre os organizadores da manifestação de «desagravo» que estão na varanda e os outros posicionados no meio das duas centenas de manifestantes na extremidade da rua de São Bento.
Depois de os dois lideres abandonarem a varanda os organizadores desta encenação posam para uma foto como quem posa para a eternidade. Um deles, tira do casaco impecavelmente vincado, uma folha de papel e exibe o slogan nela inscrito para mais uma foto apressada.
Recordo-me que aquela mesma varanda foi o palco escolhido por dois anarco-sindicalistas que ousaram colocar nela uma enorme faixa de pano a dizer «Vendido», em protesto contra as privatizações. Mas isso foi em junho passado.
Hoje o conspirador subversivo, protestante valentão, faz número idêntico com uma folha de papel A4 mas sem perder a pose aristocrata nem sofrer qualquer incómodo policial. Por certo, a esta hora, já terá publicado a demonstração de tamanho ato de bravura na sua página do facebook: «Não à moção de rejeição!»
E agora, Senhor Presidente?
Este foi o dia em que o país saiu do fado das inevitabilidades governativas a preto e banco e ensaiou os acordes coloridos da «Internacional», em nome da maioria parlamentar saída das ultimas eleições. O futuro a Deus pertence e, por isso, apenas constato o óbvio já passado:
1 – A solução governativa apresentada pela esquerda é o menos mau dos cenários, dadas as restrições constitucionais à ação de um presidente da República em fim de mandato.
2 – Cavaco Silva poderia ter evitado este beco de saída estreita se tivesse marcado eleições para Junho ou Julho. Nessa altura teria à sua disposição todas as ferramentas constitucionais para resolver um eventual impasse parlamentar. como o que agora vivemos. Mas recordo que, por essa altura também, o PS surgia à frente nas sondagens e desconfio que a marcação de eleições para Outubro não teve como primeira motivação o interesse nacional…
3 – O apoio da esquerda parlamentar à formação de um governo é algo de extraordinário mas é sobretudo a perda da virgindade do PC e do BE. Uma coisa é a ideologia de quem está afastado dos centros de decisão (ou arco do poder, com agora se diz) e outra, substancialmente diferente, é a «realpolitik» de quem se propõe a governar ou a apoiar uma solução governativa.
A partir de agora todos os ovos contam para fazer omeletes.
Nestas circunstâncias, a maturidade da democracia portuguesa dá um passo de gigante e a política voltou a ocupar o espaço público de onde andava afastada em detrimento da economia e finanças ou do futebol.
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«Repórter ENG», crónica de João Amado Gabriel
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