Referiu-se no artigo anterior sobre a Gíria Quadrazenha que é difícil dizer se determinado termo era da Gíria que o transmitiu a outras povoações ou se era de uso comum em diversas terras.

O problema enunciado pode resumir-se na seguinte pergunta:
– Quem transmitiu vocábulos e a quem?
Em tempos recuados as deslocações eram difíceis e morosas por se fazerem a pé ou a cavalo em bestas de carga, umas mais velozes que outras. Isso não impediu o quadrazenho de calcorrear o país inteiro.
Desse modo, o quadrazenho era um factor de transmissão de linguagem e de costumes. Não admira, pois, que a Gíria Quadrazenha tenha contaminado outras gírias, sobretudo em Portugal, transmitindo-lhes alguns dos seus termos. Considero que transmitiu 7 a 9 palavras ao Minderico, 16 a 28 ao Galrar de Molelos, 22 a 39 ao Verbo dos Arguinas, 7 a 10 ao Lainte e 7 a 9 à Gíria de Albergaria-a-Velha.
Mas, não era só o quadrazenho que calcorreava as terras de Portugal para vender o seu contrabando ou mesmo fazendas portuguesas. Outros vendedores faziam o mesmo, talvez em regiões mais limitadas. Era o caso dos alvanéis de Molelos que utilizavam o Galrar de Molelos, dos canteiros da zona de Oliveira do Hospital que utilizavam os Verbos dos Arguinas, dos comerciantes de Castanheira de Pera que utilizavam o Lainte, dos contrabandistas de Albergaria-a-Velha que utilizavam a sua Gíria, dos cardadores de lã e comerciantes de mantas de Minde que utilizavam a Piação do Ninhou, dos pedreiros de Beiriz (Póvoa do Varzim) que utilizavam o Verbo dos Erguinas e dos pedreiros do Minho que utilizavam o Latim dos Canhoteiros.
A Gíria de Quadrazais apresenta ainda ligações com as gírias de comerciantes ou profissionais da Galiza, como o Lapizarro, gíria dos cesteiros de Mondariz, o Verbo dos Xingreiros, músicos de Cela Nova, o Burón, gíria dos comerciantes do Vale de Fornela, o Verbo dos Cabaqueiros, telheiros do Rosal, o Verbo dos Arguinas, canteiros de Cotobade, o Latim dos Chafoutas, alvanéis de Tominho e o Baralhete da Chaira, os afiadores e outros ambulantes de Ourense.
Há ainda ligações a outras gírias de outra regiões de Espanha, como o Bron dos caldeireiros de Miranda (Ávila).
Entre a Gíria Quadrazenha e o Verbo dos Erguinas de Beiriz há 20 palavras iguais e 12 semelhantes; com o Verbo dos Arguinas da zona de Oliveira do Hospital há 16 palavras iguais e 14 semelhantes; com o Galrar de Molelos há 16 palavras iguais e 12 semelhantes; com o Lainte de Castanheira de Pera há 7 palavras iguais e 3 semelhantes; com a Gíria de Albergaria-a-Velha há 7 palavras iguais e 2 semelhantes; com a Piação do Ninhou há 7 palavras iguais e 2 semelhantes; e com o Latim dos Canhoteiros há 4 palavras iguais e 4 semelhantes.
Com as Gírias de Espanha há a seguinte relação:
Entre a Gíria de Quadrazais e o Lapizarro de Mondariz há 18 palavras iguais e 9 semelhantes; com o Verbo dos Xingriros de Cela Nova há 15 palavras iguais e 11 semelhantes; com o Burón do Vale de Fornela há 15 palavras iguais e 8 semelhantes; com o Verbo dos Arguinas de Cotobade há 12 palavras iguais e 8 semelhantes; com o Verbo dos Cabaqueiros do Rosal há 11 palavras iguais e 9 semelhantes; com o Bron de Miranda (Ávila) há 9 palavras iguais e 9 semelhantes; com o Latim dos Chafoutas de Tominho há 7 palavras iguais e 3 semelhantes; e com o Baralhete da Chaira de Ourense há 7 palavras iguais e 2 semelhantes.
Em conclusão: as gírias que apresentam maior número de palavras iguais e semelhantes com a Gíria Quadrazenha são, por ordem decrescente, o Verbo dos Arguinas de Beiriz, o Lapizarro, o Verbo dos Arguinas da zona de Oliveira do Hospital, o Galrar de Molelos, o Verbo dos Xingrei-ros e o Burón, ou seja, com gentes do Norte de Portugal e Galiza, à excepção do Burón, de Leão.
Porquê estas ligações?
Tratando-se de ambulantes, os quadrazenhos iam para todo o lado e aí recebiam palavras para a sua gíria e transmitiam palavras da sua para as outras gírias. Nas genealogias que publiquei nos 3 volumes da minha obra «Para que não se Perca a Memória de 400 Anos de Vida em Quadrazais» encontrei em Quadrazais gente de todas as partes do país e também da Galiza, nomeadamente de São Pedro (Ourense), terra da Chaira dos afiadores, que vinham trabalhar para Quadrazais e aí ficavam.
Temos de ter também em conta a origem galega dos povoadores de Riba Côa no tempo de Fernando IX de Leão.
Os falantes do Verbo dos Erguinas da Póvoa de Varzim eram pedreiros. Embora não tenha encontrado nenhuma pessoa desta região que se tenha fixado em Quadrazais, não é de excluir que pedreiros da Póvoa tenham vindo para aqui trabalhar e depois partissem. Mas é mais provável terem sido os ambulantes quadrazenhos a vender as suas mercadorias pela Póvoa.
Os falantes do Lapizarro eram cesteiros que poderiam vir até Quadrazais para aí fazerem e venderem os cestos. Não seria rentável trazer da Galiza meia dúzia de cestos já feitos para vender tão longe. Haveria tempo para intercambiar termos das suas gírias.
Quanto aos contactos com os falantes dos Verbos dos Arguinas, os contactos faziam-se sobretudo na Covilhã, lugar frequentado pelos contrabandistas quadrazenhos e onde aqueles trabalhavam. Com os Xingreiros os contactos terão sido com os quadrazenhos que deambulavam pela Galiza ou pelo norte de Portugal onde os músicos iriam tocar.
Com os comerciantes do Burón os contactos seriam normais entre gente da mesma actividade – o comércio, apesar da distância geográfica que os separava. O mesmo aconteceria com os canteiros de Cotobade, os telheiros do Rosal, os alvanéis de Tominho e os caldeireiros de Ávila.
Quanto aos falantes do Baralhete da Chaira, afiadores e capadores ambulantes, quem não conhece o som das flautas destes homens que ainda hoje calcorreiam as ruas das povoações de Portugal, mesmo as da capital? Na minha infância, eram muitos os que passavam por Quadrazais, aliando a arte de amolar facas e tesouras à de capadores de porcos e até sangradores de animais e também à de paraugueiros (reparadores de guarda-chuvas), nome que ficou como alcunha de uma família quadrazenha.
Portanto, os contactos com estes eram frequentes mesmo sem saírem de Quadrazais. E estes galegos poderiam ter ainda transmitido nessas ocasiões palavras de outras gírias deles conhecidas.
Com os falantes do Lainte e os de Albergaria-a-Velha, os contactos entre comerciantes seria normal por este país fora.
Quanto à Piação do Ninhou, não é verdade que os quadrazenhos se abasteciam de mantas em Minde para depois vender noutras partes?
Não teço considerações sobre outras gírias que apresentam um número inferior a 5 palavras iguais às da Gíria Quadrazenha, mas os contactos com essas gírias poderiam ter sido directos ou indirectos.
Quando surgiu a Gíria Quadrazenha?
É opinião corrente que a Gíria Quadrazenha foi inventada para baralhar a Guarda-Fiscal na actividade do contrabando. Sendo assim, a Gíria Quadrazenha teria surgido depois de 1875, data em que foi criada esta guarda. Atendendo a que o contrabando sempre existiu nas zonas fronteiriças, embora talvez com outro nome, teremos de recuar a sua origem à Idade Média. Perante o estudo do galego Jorge Rodrigues Gomes-Falas Secretas, que faz entroncar estas gírias das corporações de artífices (criptolectos ou gírias gremiais, como lhe chama) nos construtores das catedrais na Idade Média, mais aquela minha afirmação tem base verosímil. O negócio sempre necessitou de um certo segredo, que se traduzia em os negociantes não serem entendidos pelos compradores enquanto aqueles estabeleciam preços a propor a estes.
Este problema de datas só se resolveria se houvesse obras antigas que falassem destas gírias. Mas, só há referências a gírias espanholas desde 1810. Quanto às portuguesas, o Minderico é referenciado a partir da segunda metade do séc. XIX e a gíria dos contrabandistas de Albergaria-a-Velha é referenciada por Adolfo Coelho em 1892. Quanto à Gíria Quadrazenha, só na primeira metade do séc. XX encontramos referências a ela por parte de Joaquim Manuel Correia, embora o livro que a referencia tenha sido feito nos finais do séc. XIX, e por parte de Nuno de Montemor (1939) e João Franco (1941).
Claro que foi aumentada ao longo dos tempos (e talvez também tenha perdido alguns termos). Foi o caso de gázio (gajo, tipo) e macalo (cavalo), sendo que macalo já fora registada por Joaquim Manuel Correia e por Nuno de Montemor.
Luísa Gázia herdou Gázio do pai. Este mandou um miúdo com o cavalo branco beber água ao pio, como era costume. No regresso, junto do comércio do ti Barreiro, alguém lhe disse que tinha um cavalo bonito. O miúdo, meio gago, respondeu-lhe: quer macá-lo (mercá-lo = comprá-lo)? O Gázio (gajo, referindo-se ao dono) vende-o. Assim se formaram duas palavras da Gíria: macalo = cavalo; gázio = gajo, tipo.
Conclusão
O uso de gírias por gentes da mesma profissão, mesmo de locais muito distantes, deve ter-se mantido ao longo de séculos. Havia ambulantes de todos os falantes dessas gírias e os contactos seriam frequentes. Neste intercâmbio, estou em crer que o quadrazenho, o mais ambulante de todos, terá tido um papel maior na transmissão de palavras, da sua gíria ou das de outros, para terceiros, recebendo deles também contributos para a sua gíria.
Só documentos escritos, até agora não encontrados, poderão esclarecer esta saga das transmissões.
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