O irmão, o Zé Lá Vai, fora para Vale de Espinho, onde casara em segundas núpcias, já que a sorte lhe fora adversa com a primeira mulher – a Balvina. Os pais já tinham morrido havia muito.

E o Môco, que seria dele? Ficava a irmã Marzé Tôrra com ele!
Com casa e carro de vacas, com bom corpo para trabalhar, não haveriam de faltar jeiras com que ganhasse para si e para a irmã. Ser surdo e quase mudo, que importava?! Lá estava a irmã para atender os clientes e acertar com eles os dias em que o Môco iria lavrar as suas terras, acarretar cepas, estrume ou outro qualquer serviço. A irmã se encarregaria de ceifar a farrém para as vacas, que transportaria na burra.
Além disso, ainda tinham uns bocadinhos para tratar, onde colheriam pão, batatas, botelhas, tarrábias, couves e outros legumes para casa, para dar à burra e criar um marraninho.
Os dias iam correndo normalmente sem incidentes.
Porém, num belo dia em que o Môco seguia com o carro estrada fora, de aguilhada em punho atrás do carro, com o Piloto a dar ao rabo à frente das vacas, aparecem os guardas. Dirigem-se a ele e pedem-lhe a licença do Piloto. O Môco nada entendeu do que disseram os guardas. Mas, porque apontavam para o cão, deduziu que algo se passava com o Piloto.
– Levai-o! Levai-o! – respondeu.
Insistiram os guardas:
– A licença?
– Levai-o! Levai-o! – retorquiu.
Apercebendo-se os guardas que nada havia a fazer, nem levaram o Piloto nem o Môco do Zé Lá Vai.
E lá seguiu este o seu caminho tranquilamente sempre com o Piloto à frente a dar ao rabo.
Surdo-mudo havia um à Praça também com vacas, embora fossem do pai Manel Ruvino. Quando rapaz, gostava de passar o tempo atirando fisgadas aos pássaros que pousavam nas árvores. De vez em quando lá caía um nos cestos dos figos, uvas, peras ou maçãs que os de Penamacor, onde a fruta amadurava mais cedo, vinham vender a Quadrazais em burros que trilhavam o caminho da serra.
Já grande, trabalhava nos campos do pai com as vacas.
Teve sorte nunca lhe terem saltado os guardas, que cão tinha ele. Mas, com ele ainda teria sido mais difícil aos guardas comunicar, já que era surdo-mudo e nem:
– Levai-o! Levai-o! – poderia dizer.
Por não ser môco nem mudo, teve menos sorte o Zé da Reis, de farto bigode.
Encostado a uma parede em frente de sua casa, ao soalheiro, alguém estranho se abeira dele e lhe pede lume. Puxa o Zé da Reis do seu metcheiro que trazia sempre consigo e vá de satisfazer o estranho com toda a solicitude, que quadrazenho, para os de fora, era sempre muito simpático. Saca o estranho de um cartão de fiscal do tabaco e vá:
– Cá da licença do isqueiro?
– L’cença?! Qual l’cença?
Nunca ele ouvira falar que era preciso licença para acender o seu metcheiro espanhol, que os isqueiros de bolso portugueses seriam coisa da cidade.
– Sim, a licença de isqueiro! Não sabe que ou usa fósforos ou tem de ter uma licença?
– Nunca de tal ouvi falar e palitos não dão jeito no bolso!
– Então vai ter de pagar a multa!
– Eu, pagar multa por lhe acender o cigarro? Que ingrato!
– Pois é! É a nossa missão.
Ponderou o Zé da Reis se deveria pagar. Ameaçado com o tribunal se não pagasse, lembrando-se que teria de pagar a um advogado para o defender, custas do tribunal, etc., tudo junto, teria de vender algum chão para pagar. E ainda poderia prejudicar a carreira de polícia e guarda-fiscal dos filhos Vitorino e Zé.
– Passe lá o papel e desapareça da minha vista!
Pagou e não bufou. Bem lhe apetecia insultá-los. Pensou no filho Zé que perseguia os próprios quadrazenhos para os lados dos Fóios, onde estava colocado, até lhes roubar os carregos, que criticado era lá na terra por isso.
Lembrou-se que o filho Vitorino também poderia passar multas aos lisboetas.
Se os seus filhos colaboravam com o Estado, que razões tinha ele para impedir os fiscais de o multarem?
Ao menos, não lhe tivessem pedido lume! Por bem fazer, mal haver! Por que não esperaram que ele acendesse o seu cigarro e, então, sim, poderiam pedir-lhe a licença do metcheiro?
Raios partam no diabo! Começara mal o dia. Para a outra vez, não viessem estranhos com falinhas mansas, que o Zé da Reis não iria mais em conversas.
Queriam lume? – Não tenho – responder-lhes-ia.
Enfim, nada que um copito não fizesse esquecer.
– Oh Mariê, traz lá a borracha que aqueles cães já me estragaram o dia.
Bebeu à catalona até se fartar.
Malditos! Largar o metcheiro? Nem pensar. Tirar uma licença? O raio dos fiscais que fossem ganhar a vida a sachar batatas, para saberem quanto ela custa.
Nada, não. Era só ter mais cuidado com estranhos.
Vá lá que não os convidou primeiro a beber um copo em casa! Teriam visto as sedas e as colchas espanholas no meio da sala.
Que teria sido dele?! A essa hora iria a caminho do Sabugal, preso. Aí, nem dois prédios chegariam para se livrar de escrivões, guardas, juízes e outros que vivem da desgraça do pequeno.
Quem sabe se não teria sido preciso recorrer a um empréstimo do Sr. Nacleto?!
E teria podido pagá-lo? Já se via sem nada, comido por lobos de toda a espécie, que dos reais ele não tinha medo.
– O melhor é não pensar mais nestas coisas, senão ainda dou em doido.
– Zé, anda p’ra casa jantar?
É verdade, já era meio-dia. Vamos lá jantar!
Um dia contaria aos filhos o sucedido. Será que eles o censurariam por ter pago?
O metcheiro acompanhá-lo-ia até ao fim dos seus dias mas, antes de o acender, olhava sempre para o lado, não aparecesse outro fiscal a multá-lo.
Mudas com abundância tinha o Zé Manel Mocho com casa em frente ao Candajo. Tinha carro de vacas e, certamente, também cão. Mas não era ele mudo. Das quatro filhas que tivera, só a mais velha não tinha defeito. A penúltima, a Celda, coitada! Era maluquinha. A segunda e a quarta saíram mudas, embora de juízo perfeito.
A segunda, bonitota, creio que até casou.
A sorte do Mocho foi nunca lhe terem saído os guardas ao caminho, senão não poderia dizer:
– Levai-o! Levai-o! – E teria de pagar a multa.
Notas:
Beber à catalona – beber por barril, botelha ou borracha afastados dos lábios.
Borracha – a gudra espanhola, recipiente de couro com um bico.
Botelha – abóbora.
Cá de – onde está.
Chão – terreno de cultivo.
Escrivões – escrivães.
Farrém – ferrã.
Fisgada – pedrada com fisga.
Jantar – almoçar nas cidades.
L’cença – licença.
Marraninho – porquinho.
Marzé – Maria José.
Metcheiro – isqueiro espanhol com pedra e torcida.
Môco – mouco.
Nacleto – Anacleto
Nada não – não.
Palitos – fósforos.
Raios partam no – raios partam o.
Tarrábia – beterraba.
Vá! – vamos!
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