As leiras não davam o suficiente para matar a fome, mau grado os braços doessem com tanto esforço a cavar a terra. Nesses anos do início do século XX a fome grassava por toda a Europa, acabada que era a Primeira Grande Guerra, que não se contentou em matar milhões de soldados, mas destruiu ainda as culturas, matou animais e desorganizou toda a rede comercial. Portugal também sofreu com a guerra, embora estivesse longe do seu epicentro.

Quadrazais mandou para a guerra catorze dos seus rapazes. Felizmente regressaram todos vivos, embora o Quim Sapateiro sem uma vista, que depois substituiu por uma de vidro. Por isso fora promovido a sargento e tinha reforma correspondente.
Mas Quadrazais não escapou à fome generalizada. Era preciso encontrar terras mais produtivas ou onde o negócio fosse melhor que em Quadrazais, onde o contrabando também fora afectado pela falta de dinheiro e pela miséria generalizada.
Surgiu a saída para o Brasil e para a Argentina. E o João Torres Semião lá partiu com mais uns tantos. De vinte quadrazenhos tenho eu foto tirada na Argentina e que reproduzi no meu primeiro volume de «Para que não se Perca a Memória de 400 Anos de Vida em Quadrazais». Desses, todos regressaram, em geral tão ricos como partiram.
Passados anos aparece na terra o nosso João Torres Semião, que já não conhecia os dois filhos que deixara pequeninos junto da mãe ou mesmo ainda um no ventre da mãe, que teria de os alimentar fosse como fosse.
Regressar sem dinheiro depois de tantos anos, não sei se foi repatriado e lhe pagaram a viagem, seria uma desonra. E desonra o quadrazenho nunca suportou. Veio ao de cima a gabarolice e a intrujice para salvar a honra.
Faz crer aos filhos que lhes iria comprar um altmoble a cada um.
Contactam o stand da Guarda, da Opel, segundo creio, e pedem ao vendedor que venha a Quadrazais fazer o negócio.
Receber o vendedor de automóveis no casebre onde vivia na rua da Praça, ao Fundo, seria uma vergonha e indício de falta de dinheiro para o carro. Para além de se expor ao riso dos conterrâneos mesmo no meio da povoação, que, certamente, se ajuntariam para presenciar a novidade e saborearem uma provável cavalada no carro do Né ou do Casimiro.
Pede ao vendedor que pare em frente da primeira casa junto à estrada que vem do Sabugal – a do meu pai, casa caiada, grande, com quintal, que, implicitamente, o vendedor cuidaria ser a do seu cliente e por ela avaliaria as posses do mesmo.
Meu pai, que de nada sabia, ao vê-los na estrada, convidou-os a entrar para o curral e a beber um copo, hábito de quem tinha vinha. Não se fizeram rogados e o meu pai assistiu ao negócio sem nele se meter.
Acordado ficou o negócio, mas os carros nunca foram levantados, que dinheiro para eles não havia.
O povo não perdoa. Logo na aldeia correu a notícia do negócio falhado, sendo os próprios filhos a denunciar a falta de galhal para o efeito e a total penúria do regressado, que passou a comer das sopas dos filhos.
E como o povo não perdoa, depressa a canalha adquiriu um novo alvo de chacota para substituir o Fausto.
– Já vieste tarde! – gritavam-lhe de longe.
E ele, não suportando o escárnio, insultava tudo e todos. Pior ainda.
– Já vieste tarde! – gritavam de novo.
Repetiam-se os insultos com palavrões de toda a ordem. O João Torres Semião já não podia sair de casa. Só lhe restava desaparecer.
As Erínias tiveram pena dele e fizeram-lhe a vontade. Átropos cortou-lhe o fio da meada e ele nem suspirou.
Os filhos que trabalhem, se querem andar de carro. Ou que vão para o Brasil e tenham melhor sorte que ele. Ou para França, como o resto dos quadrazenhos, a puxar pelo lombo.
O Casimiro seguiu-lhe o conselho e foi para França. O Né fez-se taxista lá na terra. Já tinha o seu carro!
Notas:
Altmoble – automóvel.
Canalha – miudagem.
Cavalada – viagem curta.
Curral – cerca da casa onde deitavam palha para se transformar em estrume.
Galhal – dinheiro.
Né – Manuel.
Leave a Reply