As crises reais da renovação populacional e do abandono da vida rural no interior, com todas as sequelas designadas por desertificação e empobrecimento, têm motivado diferentes pensadores (e não apenas políticos isentos de pensar) à análise e reflexão crítica do fenómeno, pouco se tendo adiantado na renovação agrária.
Escrevemos renovação, e com isso pretendemos evitar outro nome que apenas trouxe empobrecimento e abandono das terras. A renovação não carece de slogans pintados nos muros, nem de cartazes out-doors prometendo mundos e fundos, como se o Paraíso pudesse ser conquistado, não pelo suor do rosto, mas pela bebedeira ideológica.
O substantivo colonização está, ainda, no purgatório, mas quando jovens estudantes trocam os cursos por regressos às terras e dedicam a vida a uma nova lavoura, eles estão a formar família no campo e libertar as terras do abandono. É como que um movimento de novas sesmarias, levadas a efeito sem latrocínio e sem apropriação iníqua.
Dentro destes sentimentos, enquanto procurávamos notícias sobre outros assuntos no semanário A Guarda, saltou-nos à vista o noticiário sobre o Congresso Beirão, realizado na Guarda nos dias 24 e 28 de Julho de 1948.
Este Congresso, a que se dignou assistir o Senhor Presidente da República, foi inaugurado com uma sessão solene no salão do Liceu Nacional da Guarda, na tarde do dia 24 de Julho. Nos dias seguintes realizaram-se sessões de estudo sobre diversas áreas temáticas: problemas sociais (dia 25), saúde e tuberculose (dia 26) e cultura e fomento (dia 27). No dia 28 os participantes viajaram em visita à Serra da Estrela, terminando a viagem na então vila de Gouveia.
Ao tempo o Governador Civil da Guarda era o Dr. Ernesto da Trindade Pereira, e Presidente da Câmara Municipal, o inigualável homem de bem, «anjo da Guarda», o Dr. Alberto Diniz da Fonseca, cuja biografia em tempos tivemos o privilégio de escrever para a Liga dos Servos de Jesus.
A principal documentação sobre o congresso consta de toda a imprensa das Beiras, em pormenor, mas basta-nos, por agora, a publicada no semanário «A Guarda» (números 2119, de 23/7, e 2120, de 30/7/1948).
Na época, uma das medidas sociais implementadas teve a ver com a ocupação útil das terras, que foi missão da extinta Junta de Colonização Interna. E foi por iniciativa deste organismo que se criaram as famosas «colónias agrícolas», entre elas a Colónia Agrícola Martim Rei, no sítio outrora chamado Peladas, embora, noutro tempo, antes de Peladas, essas terras, situadas no termo do Sabugal, entre a freguesia de Quadrazais, a anexa da Torre e o Rio Coa, serem carvalhais, matas de carvalhos.
Nesse tempo, a roçar o meio do século XX, a região da Guarda tinha bons padrinhos no Governo central, distinguindo-se o Dr. Joaquim Dinis da Fonseca, com raízes na Cerdeira, muito amigo e companheiro de Salazar. Das iniciativas em que ele pôs a sua mão contam-se algumas das que envolveram políticas assistenciais, financeiras e rurais (com o Plano de Desenvolvimento Rural). Ora sucede que, neste Congresso Beirão, um dos actos de maior monta foi o da inauguração oficial da Colónia Agrícola Martim Rei, cuja instalação começara pouco tempo atrás, e só agora havia ocasião solene para se inaugurar. Eram Subsecretário da Agricultura o Eng. Quartim Graça e Presidente da Câmara do Sabugal, se não estamos em erro, o Dr. Francisco Maria Manso.
O Chefe de Estado chegou à Guarda no dia 24 de Julho e logo nesse dia houve um cortejo de oferendas incorporando jovens agricultores dos 14 concelhos do distrito, que se juntaram no adro da Sé e procederam a ofertas ao sr. Presidente da República. O casal de jovens do Sabugal era o de Manuel Joaquim Nunes e Maria dos Anjos Cunha. O Chefe de Estado procedeu à condecoração dos 14 mais velhos trabalhadores rurais do distrito, um por concelho.
Durante o Congresso procedeu-se à entregas dos diplomas ou títulos de propriedade aos 32 novos proprietários, isto é, aos colonos das terras de Martim Rei.
Foram eles (que se apresentaram com suas mulheres) os seguintes:
Maximino Ambrósio, Manuel José Fernandes, Lourenço Candeias, Manuel Correia Lourenço, Manuel António dos Santos Teixeira, Armando Soares, Joaquim Afonso, António Arrais, José Alexandre Baptista, João Baptista Moedas, Manuel Soares, Manuel Tomé, Joaquim Augusto Baptista, Joaquim Lourenço, António José Aires Nunes, José da Cunha Monteiro, António Esteves Teodoro Pires, Manuel António Cunha Melro, José Melo, José Manuel Lopes, Agostinho Baptista, José Augusto Alves, Germano Capela, Henrique Soares, António Teixeira Monteiro, António Manuel Martins Piche, Manuel Augusto Manso, Manuel António Baptista, Florêncio Soares Ferrão e Gil Augusto Monteiro.
Os novos agricultores, além das terras de boa qualidade, receberam também as instalações para a família e para o serviço agrícola: casas desenhadas segundo um projecto único, inspirado no modelo de arquitectura rural da região, com cozinha, sala comum, três quartos, sala para refeições, retrete, chuveiro e alpendre. Em anexo, as instalações para a vida agrícola: estábulo para cinco bovinos (fornecidos pela Junta de Colonização Interna), uma cisterna para água e um palheiro.
Foi uma obra que, nas palavras do bispo da Guarda, concretizou ali, no planalto, a doutrina social da Igreja – a verdadeira liberdade é garantida pela propriedade. Tal é o dever do Estado, que transformou 32 casais de proletários em proprietários, algo bem diferente de assalariados colectivos.
Depois vieram a capela dedicada a Santo Isidro, padroeiro dos lavradores, e a Escola Primária, junto da qual, num penedo, se gravou a celebérrima quadra do poeta Correia d’Oliveira:
«Quando a preguiça morrer / Até a monte maninho / Até as penhas da serra / Darão rosas, pão e vinho».
Que nós, os de Quadrazais, que ao Sabugal íamos a pé, sabíamos de cor e salteada…
Assim se processou, na medida do possível – houve mais colónias além das Peladas – a verdadeira reforma agrária.
Hoje em dia nada sei sobre o estado da Colónia, mas espero que ainda exista e, se possível, melhorada, mas da Cooperativa votada à produção de vinho, nunca mais ouvi falar.
:: ::
«Carta Dominical», por Jesué Pinharanda Gomes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Fevereiro de 2007 a Setembro de 2018)
:: ::
Leave a Reply