Num dos simulacros de eleições presidenciais do, mesmo assim, a muitos títulos e para muitos saudosos, do tempo de Estado Novo, corria nos folhetins de feira uma trova.

A dita trova começava assim:
Ainda hão-de nascer os sábios
Que estudem nos alfarrábios
E descubram as razões
Por que os craveiros nacionais
Se dão tão bem nos Quintais
E se dão tão mal c’os Quintões
A quem se não lembrar – e serão novecentos e noventa e nove em cada mil portugueses – recordaremos que se trata da invocação dos nomes dos dois candidatos – o general Craveiro Lopes, pela União Nacional, e o almirante Quintão Meireles, pela oposição.
A toada só nos interessa pela inclusão do termo alfarrábio.
Segundo os dicionaristas, o termo vem do árabe, onde significa roto, esfarrapado. Ou tirado das metáforas de Al-Farraby, filósofo do século décimo, cujas obras só se encontram manuscritas.
Livro velho; cartapacio; folheto.
Alfarrabista, é o que negoceia em livros velhos e de pouco valor. Buquinista à inglesa.
Stefan Zweig, escritor hoje praticamente desconhecido, mas em grande voga nos anos trinta do século passado, deixou, entre a sua numerosa e tão profética como supererudita obra, uma pequena biografia dum desses famosos buquinistas, a que deu o título «O Alfarrabista Mendel».
Ao lado de obras de grande complexidade como «O Combate com o Demónio», «Três Poetas da Própria Existência» e «Castelio Contra Calvino», de amplíssima visão socioeconómica, como em «Brasil, País do Futuro», ou análise de sentimentos in «Vinte e Quatro Horas da Vida duma Mulher», o opúsculo não destoa.
De resto, Stefan era um judeu profundamente sensível e antevendo a tragédia que estava a desabar sobre a sua raça com a erupção do hitlerianismo, suicidou-se encerrando a declaração de intenções com uma estrofe camoneana que transcrevemos:
No mar, tanta tormenta e tanto dano
Tantas vezes a morte apercebida
Na terra tanta guerra, tanto engano
Tanta necessidade aborrecida
Onde pode ocultar-se um fraco humano
Onde segura terá a curta vida
Que s e não arme e não se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno…
Este negativismo contrasta fortemente com o conformismo e a tranquilidade dos alfarrabistas, debruçados sobre as suas pequenas preciosidades.
Mas em luta contra os vendedores de bibliotecas, muitas vezes a exigirem, fortunas por falsas antiguidades e irreconhecíveis fac-similes… Outras tantas a regatear com oportunistas que querem, ao preço da uva mijona, exemplares únicos.
Ou a vigiar transeuntes, aparentemente pessoas de bem, mas capazes de surripiar do cordel o folheto mais em voga.
No Porto, a revista «As Artes entre as Letras» dedicou praticamente todo um seu número a Nuno Canavez, alfarrabista dos tempos que correm e que bem merece a homenagem que lhe foi prestada nos seus oitenta anos de vida, vividos entre livros.
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«Caso da Semana», análise de Manuel Leal Freire
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