A canalha gostava de passar o tempo perseguindo velhos, chamando-lhes os mais diversos nomes. O meu trisavô materno, José Loureiro, era atentado com o nome de «Pandareta».

Bem perto dele morava o Meneiro a quem atentavam aos gritos de «Meneiro-Regadelho». Na mesma rua havia outro, o pai do Zé Manel Coxo, a quem se dirigiam como o «Professor Coxo». Ainda nessa rua que segue para a Santa Eufêmia morou o Zé Moreira.
Já o conheci viúvo, todo vestido de preto. Por isso, a canalha começou a alcunhá-lo de Pássaro da Morte. Colocados nas esquinas das ruas, quando o viam passar para visitar a sua propriedade entre a estrada e a Cova, uns cem metros a seguir ao cemitério, sempre de espingarda ao ombro, gritavam.
– Pássaro da Morte! Qua! Qua! Qua!
O pobre do Zé Moreira, que este era o seu verdadeiro nome, afinava. E começava a insultar a canalha e a mãe dela. E insultou também mulheres e raparigas que lavavam a roupa no Lameirão da Ribeirê, num dia em que passou um bando de corvos a crucitar: «Qua! Qua! Qua!»
Estava o Pássaro da Morte do lado de lá da ribeirê com um cavalo branco que rapava num lameiro. Ao ouvir: «Qua! Qua! Qua!», pensando que eram as lavadeiras a dirigir-se a ele, começou a insultá-las e a mostrar-lhes o sexo, baixando as calças.
Felizmente nunca se lembrou de usar a espingarda para afugentar os insolentes, o que poderia trazer consequências trágicas.
Mas usou-a uma vez. Vinha ele ou ia para a dita propriedade quando, em frente ao cemitério, se lhe atravessa uma cobra ou víbora, das que diziam que se alimentavam dos cadáveres, com cabeleira enorme, que metia medo.
Tentou o Sá, que ali chegara, matá-la com um malho. Qual quê? Empinou-se a víbora, toda assanhada e pronta para se atirar aos dois. Pega o Pássaro da Morte na sua espingarda e pum!, desfez a víbora.
Sempre valia a pena andar acompanhado da sua menina espingarda!
Por o Manel da Cruz levar consigo a espingarda até ao Soito Concelho, aconteceu a tragédia de ter matado com ela o Fracisco Ruvino, que avançava para ele para o matar, como já lhe havia várias vezes prometido. Motivo: o Manel da Cruz dizia que fora o gado do Fracisco Ruvino que lhe havia comido a sua seara, coisa que aquele negava.
Voltemos ao Pássaro da Morte.
Nesse dia ganhou pontos e a canalha passou a ter medo da espingarda, para além de olhar o Pássaro da Morte com o respeito devido a heróis.
Mas foi sol de pouca dura, que a canalha depressa se esqueceu do feito e precisava de fazer a festa nas ruas. E lá voltaram os gritos de:
– Qua! Qua! Qua! Pássaro da Morte!
Estes gritos insultuosos só terminaram com o último voo do Pássaro da Morte. Este pássaro, o corvo, identificado com a morte por ser negro, como dizem ser a cor da morte, afinal acompanhou-se a si próprio para o outro mundo.
Nunca mais se ouviram os «Qua! Qua! Qua!» nas ruas. Quem quisesse ouvir esses pios agoirentos teria de ir até algum pinhal para onde tivessem atirado algum cadáver de burro ou cão que atrairia os corvos e os seus «Qua! Qua! Qua!»
Não se ouvia «Qua! Qua! Qua!» mas ouvia-se:
– Arre macho!
A canalha tinha de divertir-se, fosse o alvo gente da terra ou de fora.
Vinha frequentemente a Quadrazais o ti Zé Maria, sapateiro de Vale de Espinho, vender e procurar sapatos para reparar e depois devolver já reparados no dorso de um macho.
Não tardou a canalha em pegar nas habituais palavras do condutor do macho para que este andasse mais depressa:
– Arre macho!
Começa a canalha a repetir esta ordem:
– Arre macho!
E acrescentava:
– Diga lá o verbo rapar!
O vale d’espinheiro, em vez de passar e andar, começa a molestar-se com a expressão e a dar troco à canalha, mandando a garotada para todo o lado com palavrões e com expressões como: «Rapa tu, rapa tó mãe, rapa tê pai!»
Diz o povo que quem se mete com a canalha sai mijado. O vale d’espinheiro não saia molhado, mas saia insultado, talvez já sem vontade de voltar a Quadrazais, não fosse a necessidade de ganhar a vida. E só o deixaram em paz quando ele deixou de ir a Quadrazais, por incapacidade ou por ter morrido. Para o outro mundo é que ele não levou o macho, não fosse a pequenada de lá continuar com o «arre macho!». Estou certo que, se por lá encontrasse um miúdo quadrazenho, teria outra vez o inferno, mesmo que no céu estivesse.
Notas:
Atentar – enervar.
Canalha – garotada.
Fracisco – Francisco.
Malho – machado.
Tê – teu.
Tó – tua.
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