Criado nas quintas do Rebispinheiro (Ribeiro Espinheiro para os «dotores»), guardava gado, cultivava pão e, junto do ribeiro, umas batatas, couves e outras hortaliças. Chegou a ter carro de vacas e mais tarde de burros, que as vacas eram caras e davam muito trabalho a alimentar. Por lá cresciam umas macieiras e cerejeiras, que ninguém plantara, trazidas as sementes pelos pássaros ou pelo vento, sabe Deus donde!

As çareijas não deviam ser más. Encheu uma cesta e toca a comer com caroço e tudo, pois dava muito trabalho tirar os caroços e perdia tempo de lavoura ou teria de comer poucas. Escolheu o método mais fácil: comer muitas com o caroço.
Despachou a cesta. Empanturrado, debruçou-se sobre a fontinha que, nascida no seu terreno, lacrimejava no ribeiro, quando a sua água não era desviada para o couval. E bebeu, bebeu, até se fartar, esquecendo as máximas dos mais velhos:
– Em ribê de çareijas e belanciê não se bebe áugua e vinho em ribê de belanciê é encortiçá-la no estômago.
Era o hábito, comer muitas, compradas à cesta na Feira-Nova no Sabugal. Bons tempos em que uma cesta de cerejas se comprava por uns vinte e cinco tostões!
O efeito não tardou a fazer sentir-se na barriga do Manel. Uma daquelas dores de barriga de se lhe tirar o chapéu. Bem puxava por uns bafos que saíssem pelo ânus. E nada. As dores eram tantas que o melhor era ir para casa e seguir para o médico. A casa chegou. Ir ao médico, não aguentava.
Mandaram chamar do Sabugal o Dr. Adalberto, natural do Ozendo, que tinha sido colega de meu pai na escola em que o Sr. Prof. Robalo, também do Ozendo, era o professor.
Pergunta-lhe o médico o que sente. Ele já não aguentava as dores de barriga. Pensou que ia morrer.
Soube o médico da façanha de ter comido uma cesta de cerejas sem tirar o caroço e logo se apercebeu que aquelas cólicas só passariam com uma intervenção de mão metida no ânus até o mais dentro possível do intestino, qual clister. Pede um balde e da barriga sai um baldão de caroços, operação que lhe alivia de imediato as dores.
Passados dois dias estava pronto para outra. Mas noutra é que ele não cairia.
Não sei se comeu çareijas mais alguma vez. Com caroço, certamente, que não! Com caroços não queria mais tratos.
Não se livrou contudo deles, pois a rapaziada logo lhe pôs a alcunha de Manel da Caroça, que manteve por toda a vida, alcunha que transmitiu aos descendentes.
Terá contado a sua história das cerejas a São Pedro? Para entrar no céu, certamente que lha contou. Apanhou São Pedro de cara para o lado a rir a bandeiras despregadas e aí vai ele a entrar em passo de corrida.
São Pedro até se deve ter lembrado da história que com ele se passara quando Jesus lhe mandou guardar uma ferradura velha que encontraram no caminho. Com o dinheiro da venda da ferradura compraram cerejas. Justamente, cerejas! Mas poucas devem ter comido, que o dinheiro do negócio fora pouco.
Agora aparece-lhe um glutão de cerejas, que comera uma cesta delas de uma só vez. Até deve ter ficado com inveja, que as compradas com o dinheiro da ferradura não deram para guardar o sabor.
Notas:
Áugua – água
Belanciê – melancia.
Çareijas – cerejas.
Dotores – doutores.
Em ribê de – por cima de.
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