A Quinta de Gralhais de que me lembro, a minha Quinta de Gralhais, não tem quase nada a ver com o que hoje existe no mesmo local. Há 55 anos, ia muitas vezes a Gralhais. Recordo tudo dessa quinta, anexa da minha aldeia. Há histórias diabólicas ligadas a esse a outros espaços amplos de grande agricultura. A propósito de uma série de foto-reportagens publicada esta semana num «Facebook» concelhio, deu-me de repente a vontade de falar de Gralhais de antanho nesta minha crónica número 230 sobre o Casteleiro… Leia. Vai gostar.
A Quinta de Gralhais, para mim, estará sempre ligada ao Ti António Joaquim. Montado no seu cavalo altivo, este agricultor, meu tio em segundo grau, era uma figura imponente e rodeada de um certo «hallo» na aldeia. Por um lado, pela fama de homem duro. Por outro, pela imagem naquelas ruas pequenas e de casas baixas: o homem circulava como que noutro patamar da aldeia, visto que para o vermos tínhamos de olhar para cima.
O seu chapéu de três bicos era marcante e ficou-nos na retina até hoje.
Penso que algumas pessoas ainda se poderão lembrar dele.
Gralhais, terra de gralhas
Havia muitos pássaros por lá, de facto. Se eram gralhas ou codornizes, rolas ou pegas, isso não sei. Sei que me lembro da chiadeira permanente da bicharada. E dos ralos. E de lagartos e cobras. Por aquelas zonas, não faltava bicharada de toda a espécie.
Como eu era pequeno (cinco, seis anos – acho), a cabecita registava tudo sem esforço. E guardou até este momento. Como é a primeira vez que tal escrevo, se calhar daqui por uns meses já apagou o tesouro bem guardado…
Ir a Gralhais era sempre uma festa.
Primeiro, porque a ti Mari de Jasus, irmã da minha avó materna, estava sempre bem disposta para toda a gente. Nunca a vi chateada. Sentada em volta do lume, sempre com grandes caldeirões e grande panelões de comida: a dos caldeirões para o «vivo» (o vivo eram as vacas e cavalo, égua e burra – acho que os marranos entravam noutra classificação); e a comida dos panelões de ferro preto era para os humanos. Que eram sempre muitos: os filhos, alguns dos trabalhadores que dali se alimentavam, a família toda, as visitas…
Benquerença e Três Povos ali tão perto
Do lado de lá da ribeira já não era Casteleiro: era os vizinhos. E grandes amigos do ti António Joaquim. O qual muitas vezes abalava e era esperar que viesse: três ou quatro dias de farra – esses ninguém lhos tirava. Tinha grandes amigos por aquelas zonas. E faziam farras de cair para o lado.
O lavrador montava-se no seu cavalo e seguia caminho: atravessava a ribeira, pelo pontão, e ala… Adeus até ao meu regresso, que não sei quando será. Mas voltava sempre. E sempre em cima do cavalo. Melhor: o cavalinho já sabia o caminho de cor e salteado: às vezes via-o chegar. Parecia que vinha a dormir montada no animal. E se calhar vinha. Mas em chegando ali, acordava e com ou sem álcool, a vida dele continuava como se nada fosse…
Uma história de entre muitas
Podia contar-lhe mil histórias da quinta. Mas saltou-me uma de imediato, quando vi as fotos que publico e outras da mesma série.
Uma noite de breu, em que não se via nada, uma daquelas tais noites em que o patrão estava pelas terras vizinhas «em viagem de negócios» – digamos assim –, numa dessas noites, o criado que sempre ficava ali por perto para acompanhar a família que tinha ficado na quinta, foi acordado pela patroa porque ela sentiu barulhos lá fora. Como saberá quem é do tempo dos lumes e sem electricidade, dantes as pessoas deitavam-se cedo e levantavam-se muito cedo: acompanhavam a luz solar, digamos assim.
Ora calculo que lá por essa meia-noite, já com várias horas de cama, acontece então esta cena que ficou para ser contada toda a vida.
A t’ Mari de Jasus acordou então o empregado, que estaria a dormir como sempre na palheira ali mesmo ao lado da casa, ao pé do vivo, sobretudo ao pé das vacas, na sua tarimba de ganhão.
A dona da casa estava assustadíssima.
E, lá chamou o senhor. Quando ele veio, usou uma táctica milenar. Falou alto, como se não tivesse medo, a fim de assustar os supostos ladrões:
– Ó t’ Mari de Jasus! Não tenha medo, que eu já pego aqui na espingarda e já dou cabo desses filhos da mãe.
Gritava para espantar o medo e para espantar os assaltantes…
Mas num repente, a t’ Mari de Jasus (era assim que se dizia) sai-se com esta que estragaria a táctica toda do homenzinho, caso houvesse mesmo assaltantes:
– Ó homem! Ó raio! Atão tu não sabes que a espingarda nem está carregada?!
Fim da história.
Felizmente, não havia ladrões por ali.
Se os houvesse, depois daquele aviso dela, se calhar o fim da história seria bem diferente.
… Até hoje ainda nunca percebo como é que nunca os ladrões ali abeiraram e aquela quinta, lá em casa do diabo, nunca foi assaltada.
Penso que isso só pode ter uma explicação: é que a fama do ti António Joaquim era muito grande – e ninguém queria levar com ele pela frente no assalto ou depois dele!
Notas
1. Agradeço as fotos desta peça ao meu Amigo Roberto Alfaiate Pinheiro, da página de «Facebook» do Grupo de Descendentes do Concelho do Sabugal que fez um périplo pelas quintas do Concelho, depois de uma rota das localidades. As fotos restantes desta quinta e arredores podem ser vistas… (Aqui.)
2. Já agora, repito o apelo: visite e faça-se membro desse magnífico Grupo do «Facebook» chamado «Descendentes do Concelho do Sabugal»… (Aqui.)
3. Consulte todos os dias «Serra d’ Opa», gazeta regional no Facebook… (Aqui.)
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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ERAO BONS TEMPOS PRIMO MAS ERA MUITO LINDO