Veio do Campo, de Pedrógão, zona da Idanha, trabalhar nas ceifas, e ficou contratado para moleiro, profissão que já deveria ter na sua terra. Ficou em Quadrazais até ao fim dos seus dias, com a provecta idade de oitenta e seis anos, tendo sido moleiro do Sr. Zé Jaquim, à Ponte.

Certa manhã, ia ele a pé a caminho do munho com a mulher Mariê Bárbara, atrás da burra carregada de sacos de centeio para moer, quando viu uma lebre deitada num mato.
Aguçou-se-lhe o apetite. Já saboreava a lebre cozinhada pela mulher. De olhos arregalados de contentamento, diz baixinho à mulher:
– Vai a casa e traz a espingarda.
Ata a burra a um carvalho em frente, sem fazer barulho, e senta-se à espera da mulher, sempre com o olho na lebre, como que a guardá-la, não fosse ela acordar e dar às de Vila Diogo.
Chega a mulher com a espingarda já carregada com dois cartuchos. O Zé Broas, de seu verdadeiro nome José dos Santos Bicho, faz-lhe sinal com o dedo por cima da boca, como a dizer:
– Chiu!
Já perto dela, o marido dirige-se-lhe com pouca meiguice:
– Ai! Puta, se m’aspantas!
Pega na espingarda, faz a pontaria, vira a cara para o lado e: «pum!»
Olha para o sítio da lebre e vê-a a correr. Errara o tiro.
– Como? Não é possível!
Nem os santos, que trazia no nome, lhe valeram. Talvez por ser Bicho de nome lhe estivesse vedado matar um bicho.
O sabor da lebre transformou-se em azedo vinagre que descarregou na mulher, culpada de tudo.
– Foste tu que te mexeste e a espantaste!
Não adiantava a mulher negar e atribuir o insucesso à sua falta de pontaria, agravada por ter virado a cara. Quem sabe se, por ser Bárbara Salvada, não salvou a lebre da morte.
Sim, fora ela a culpada e não recebia desculpas!
– Vamos para o munho e, para castigo, comes pão e água, quando podias rilhar uns ossinhos de lebre bem saborosos. O cheiro da lebre na panela será substituído pelo cheiro da farinha a cair do tramiado. Beberei o meu vinho sem o sabor da carne.
E já mais calmo:
– Pode ser que encontre outra e essa não vou falhar!
Outra? Seria sorte demasiada num só dia para quem não saia do caminho à sua procura e havendo já poucas nesses tempos.
E lá passou o resto dos seus dias com o sabor a lebre a chegar-lhe por vezes à boca, sem sentir a perna da lebre entre os dentes e o vinho que bebia também impregnado pelo sabor da lebre.
Terá levado esse sabor para o outro mundo?
Já terá feito nele as pazes com a mulher Bárbara?
Donde lhe veio a alcunha de Zé Broas? Embora pareça estar ligada à sua actividade de moleiro de grão de milho com que se faz a broa, a alcunha foi-lhe posta por um palhaço dos comediantes. De vez em quando apareciam na aldeia circos ambulantes que o povo alcunhava de comediantes porque o número principal eram as comédias, isto é, habilidades no trapézio, a par dos palhaços. Num número destes, um palhaço requisita a ajuda de algumas crianças e também de um ou outro adulto, a quem prendia as mãos atrás das costas e tapava os olhos e cuja tarefa consistia em, aos saltos, conseguir apanhar com a boca umas bolachas penduradas de um cordel. Antes do jogo começar, o palhaço atribuía nomes aos concorrentes e vá de atribuir o nome de Zé Broas ao pobre do Zé dos Santos, que passou a ser a sua alcunha na aldeia.
Notas:
Jaquim – Joaquim.
Munho – moínho.
M’aspantas – ma espantas.
Tramiado – peça do moinho onde cai a farinha do grão esmagado pela pedra.
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