Vem aí a Senhora da Póvoa. Nada melhor do que recordar e deixar aqui plasmadas as reminiscências da aldeia da minha infância tal como ela se encontra ainda gravada «no meu ADN». Esta e outras recordações fazem as três peças desta crónica… Leia e divirta-se tanto como a mim me diverte sempre escrevê-las. Esta é a n.º 228. Obrigado por me ler. Oxalá tenha o mesmo gozo que eu em escrever assim.
O garoto saiu-me cá um corrécio! Era assim que ouvia muitas vezes os meus familiares referirem-se às minhas escapadelas da altura: sete, oito, nove anitos.
Um dia, porém, tudo parava com toda a atenção: as ranchadas das Inguias e arredores enchiam a estrada toda a manhã a caminho da Senhora da Póvoa.
Todos os dias, o som do sino dominava a aldeia de hora a hora ou de quarto em quarto de hora, melhor dizendo… e se faltava a marcação do sino, então algo ia mal…
Três momentos, três «flashes», três estoriazinhas da aldeia dos meus primeiros anos de vida – que fica gravada para sempre cá dentro.
Éramos uns «corrécios»
Na minha aldeia, miúdo que não estivesse sempre por ali ao pés dos pais e das tias, miúdo que se pirasse para ir jogar à bola no olival durante horas e horas, quando não havia escola, esse miúdo era logo apodado de «corrécio». Essa palavra não era muito ofensiva. Mas a mim soava-me sempre a ameaçazinha. Se és corrécio e tu dizem, então estão a acusar-te.
Lembro-me muito bem de que era esta a minha sequência de raciocínio. E se te acusam, vão castigar-te. Agora, não, que não estás lá. Mas mais tarde, seja a que horas for, vais ter de voltar. E então, se és corrécio, prepara-te: até podes levar um tabefe… só por teres andado cinco horas a jogar no olival. No olival brincava-se a tudo: quando havia água, eram os canais e as regas ali implementadas, bem como as construções com terra amassada. Se não havia água, jogava-se à tchona ou a qualquer outra coisa. E quando havia bola, era futebol até fartar… Só por isso já dava para me chamarem corrécio? Bolas!
Fui ver ao dicionário: «corrécio» é o quê afinal e de que palavra vem? Vou ver agora. Só um momento.
…
Já vi. É isso mesmo: no Priberam significa «menino que gosta muito de se divertir, de vadiar, mas pouco de trabalhar, vadio». Sei agora, então, o que pensavam de mim…
E tentei saber a origem. Único registo: «origem obscura». Gosto de saber de onde vêm os termos. A origem etimológica explica-nos muitas vezes muita coisa de uma palavra e do seu significado mais profundo. Mas não se sabe, paciência.
«Nossa Sinhora da Póva»
Nossa Sinhora da Póva – sim, era assim que se cantava. Era (é) no fim-de-semana que vem. Mais propriamente na segunda-feira, de amanhã a oito. O que mais me lembra desse dia não é a passeata pela Serra acima, passando por Balcastelões (Vale de Castelões). Uma caminhada e pêras, diga-se. Mas o que mais me lembra são as carroças cheias de romeiros que iam para o Vale de Lobo (nessa época chamava-se assim a aldeia onde se faz a Senhora da Póvoa de que estou a falar). Esses romeiros espalhavam alegria pela aldeia enquanto passavam, pois faziam uma berraria do diacho com as suas cantorias profanas mas cheias de fulgor religioso. Uma mistura estranha mas verdadeira.
Um exemplo dessas cantorias, que nos deliciavam horas a fio, tantas eram as carroças:
«Nossa Sinhora da Póva,
Nossa Sinhora da Póva.
Ai viva a velha, viva a nova.
Ai viva a velha, viva a nova.
Nossa Sinhora da Póva,
Ai, Nossa Sinhora da Póva.
Ai este ano lá hei-de e ir.
Ai este ano lá hei-de ir.
Ou casada ou solteira,
Ou casada ou solteira,
Ou criada de servir.
Ai este ano lá hei-de ir.
Nossa Sinhora da Póva,
Ai, Nossa Sinhora da Póva.
Ai quem me varreu o terreiro
Ai quem me varreu o terreiro
Foi o rancho das Inguiasi,
Ai foi o rancho das Inguiasi,
Com um raminho de loureiro,
Ai com um raminho de loureiro.»
O som do sino na calmaria da aldeia
Esta semana foi-me dado a ler, mais uma vez, um texto em que se elogia e se descreve a força do som do sino da minha aldeia. Li… (Aqui.)
De todo o texto, o que mais me encanta são estas palavras: «O sino era uma companhia sempre presente. Se por acaso parava (às vezes esqueciam-se de lhe dar corda), era logo notada a sua falta.
«Hoje o relógio não dá as horas!»
«Que horas serão?»
«Ai, isto assim é uma tristeza!»
Ouvi pessoas dizerem que o relógio era uma companhia, tal era a solidão. Sempre que me lembro daquele som, revejo a aldeia quieta, serena, em silêncio. Era um toque forte mas triste. Sem pressas.
Um toque que soava cá mesmo no fundo, que mexia comigo, sobretudo se fosse em dias de tristeza ou de preocupação.
Ainda hoje quando telefono para casa e oiço lá longe o sino actual, mesmo sem querer, sou transportada para esse tempo».
:: :: :: :: ::
Notas
1 – Consulte todos os dias «Serra d’Opa», gazeta regional no Facebook… (Aqui.)
2 – Visite e faça-se membro do Grupo Aberto e Público do Facebook chamado «Descendentes do Concelho do Sabugal». É… (Aqui.)
:: ::
«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
:: ::
Leave a Reply