Nos catorze militares que de Quadrazais partiram para a Flandres para participarem na Primeira Grande Guerra ao lado dos Aliados constava o Balhé Ninê.

Não sei se sabia ler, apesar de já desde o ano de 1856 haver professor em Quadrazais. Mas os pais tinham mais interesse em que os filhos os ajudassem nas tarefas do campo ou na guarda do gado, já que não comiam letras nem alfabetos. E o Balhê Ninê foi pastor.
Lá vai o Balhé Ninê a caminho de Lisboa com os outros treze conterrâneos, onde se juntam a milhares prontos a ir de barco até à Flandres. Se foi bom ou mau combatente, não sei. Que trouxe a pele de volta, embora com uns gasezitos infiltrados, isso sei eu. Mas trouxe mais.
Num dia em que baixava as calças junto ao tronco duma árvore nos campos da Flandres, olhou para o lado e viu um saco cheio de algo. Desatou o cordel e, para seu espanto, depara-se-lhe um montão de moedas dele desconhecidas, mas certamente valiosas. Escondeu muito bem o saco, nada contou aos colegas e, como já estava perto do regresso a Portugal, foi-lhe relativamente fácil que ninguém o descobrisse.
– De quem seria tanto dinheiro?
Alguém tentara fugir do local da guerra com o produto do seu trabalho que iria sustentá-lo por algum tempo ou apenas pretendia evitar que caísse em mãos de alemães!
Terá sido abatido ali? Terá deixado ali o saco, acossado que estava por fogo, na esperança de voltar a buscá-lo logo que pudesse?
Provavelmente, nunca mais pode regressar, ceifado por alguma bala extraviada. E o saco ali ficou, para gáudio do nosso Balhé Ninê.
Já em Quadrazais, mostrou-o ao irmão João Chanas que, mais esperto e vendo ali a sua ocasião de ficar um pouco mais rico, engranzou o Balhé Ninê para que lho deixasse levar para Coimbra para saber se tinha algum valor. E o pateta do Balhé Ninê nunca mais viu o rasto ao dinheiro, segundo é voz corrente na aldeia.
– Que aquilo eram moedas que já não circulavam, sem valor nenhum, que lá deixara em Coimbra num buraco da casa! – dizia-lhe o irmão.
E o Balhé Ninê engolira a história, talvez não em seco, pois o irmão, matreiro, terá tido artes de lhe meter no bucho uns bons copitos, que tiveram o efeito de esquecer as moedas e de lembrar sempre aquela bebedeira que o irmão lhe proporcionara sem ter de pagar um tostão. Não tinha sido o irmão que o levara até Lisboa, à vista da qual ele exclamara:
– Ai mãe! Que povo com tanta candeia!
Esta exclamação é atribuída por outros ao irmão.
Lá em França, um dia meteu-se com uma moça que foi queixar-se ao pai, um oficial do exército francês. Este queixou-se ao comandante do exército português, que mandou alinhar os soldados sob seu comando, para que a moça francesa reconhecesse o prevaricador. O Balhé Ninê, que nada dissera do que se passara aos colegas, ao ver a moça, vira-se para o Meias, seu conterrâneo, e diz-lhe numa voz de meio gago, meio esgazeado:
– E mai, ó Meias, queres ver que a manega me vem acusar?
Era verdade, acusou mesmo.
O Balhé Ninê, em frente do oficial português, sem saber como defender-se, após meter o polegar na casa do botão do casaco, diz-lhe:
– E mai, mê capitão, se fui eu, qu’esta casa me caia em ribê!
Se sofreu algum castigo, não reza a história. A casa também não lhe caiu em cima.
Das filhas, a Alice teve de partir lá para a rua do Capelão, na Mouraria, em Lisboa, e a Gija, mais nova, lá ia cantarolando:
– Se mê pai morre, Gija canta e balha. Se minha mãe morre, Gija faca na barriga.
O pai morreu e a Gija não cantou nem balhou. A mãe morreu e a Gija não espetou a faca na barriga. Que isso de se matar era coisa mal vista na terra e só dois ou três o haviam feito, pelo que não tiveram direito a enterro com o padre, nem sepultura benzida. A Gija queria enterro de cristão quando chegasse a sua vez de prestar contas a Deus.
Uma das que pôs termo à vida foi a menina Prazeres, neta da ti Perricha.
Também era muito bonita, como a outra menina Prazeres que casara com o Cara Ratada.
O Constantino era das poucas pessoas que tinha acesso às suas falas. As más línguas depressa inventaram que o Constantino andava metido com ela. A menina Prazeres não aguentou essa fama injusta e, num momento de fraqueza psicológica, resolveu pôr termo à vida.
A Gija casou. Abriu-se a porta da França e lá foi ela à procura dos locais por onde o pai andara, com o sonho de poder encontrar também, um dia, um saco cheio de dinheiro. Porque o Deus Francês que dá casaco de sola e botas de borracha, no dizer do Vinagre, também podia dar montes de dinheiro.
Com isso sonha todas as noites, mas o milagre ainda não se deu, não obstante o dito em Quadrazais de que quem sonhar três noites seguidas com um tesouro em certo local, pode lá ir escavar, que o tesouro aparecerá.
Até agora o dito só se realizou ao Flozindo, segundo é voz corrente, que desenterrou umas peças de oiro ao lado da capela de São Sebastião.
Terá sido também após três sonhos consecutivos que outro quadrazenho desenterrou um tacho ou panela de moedas ali para os lados da Malhada Vaca, certamente ali deixada por quadrazenho que as queria esconder dos franceses?
Quantos sonhos ainda estarão por realizar! Moedas escondidas haverá ainda muitas. A sorte será dar com elas, com sonhos ou sem eles.
E mai… o Balhé Ninê não disse.
O truque do Balhé Ninê para despistar a autoridade foi ainda utilizado por outro quadrazenho no Porto, cujo nome não me soube indicar o Tó Ranhau, que me contou esta história.
Entra o dito quadrazenho numa loja. Procura um fato. Experimenta um, gosta dele e já não o despe. Procura uns sapatos. Calça-os e fica com eles nos pés.
Sai porta fora sem pagar. Vem o dono em sua perseguição:
– Agarrem, que é ladrão!
Alguém detém o quadrazenho na rua, bem vestido e calçado. Vem a polícia.
Grita o dono da loja:
– Esse fato é meu!
Contesta o quadrazenho. Calmamente, vira-se para o polícia e diz-lhe:
– Quer o senhor ver! Este indivíduo ainda vai dizer que os meus sapatos também são dele.
– Pois são! – responde o dono da loja.
– Eu não dizia! – avança o quadrazenho.
Ao polícia pareceu-lhe aquilo história e manda o quadrazenho embora.
E lá ficou o quadrazenho com fato e sapatos novos, sem ter de se fazer morto, como o Cardosa.
Notas:
Balhar – bailar;
Balhé – Manuel;
Baixar as calças – fazer necessidades;
Engranzar – ludibriar;
Gija – Luísa;
Mai – mais (ainda);
Manega – rapariga (termo da Gíria quadrazenha);
Ribê (em) – cima (em).
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