De seu nome José do Espírito Santo, fizera jus ao apelido dedicando boa parte do tempo à contemplação da Santíssima Trindade, em que se inclui o Espírito Santo, na sua ocupação de sacristão do padre Salcedas e depois do padre Correia, ofício que passou ao Tó Ratatau e este ao sobrinho Jaquim Ratatau.

Tocava os sinos, subindo e descendo as íngremes e já gastas escaleiras da torre do sino, abria as portas da igreja, acendia as velas do altar e as do candeeiro no meio da igreja nos dias de festa, candeeiro que descia e subia por meio de uma corda atada junto ao púlpito, preparava as galhetas para a missa, as opas para a procissão, ajudado pelos mordomos do Senhor ou do santo em honra de quem se faria a procissão. Enfim, fazia todo o serviço que competia ao sacristão, até que, saídas todas as pessoas da igreja, fechava as portas.
Também ajudava nos cânticos religiosos, sobretudo nos do Natal, com a sua voz cava de baixo, em que sobressaía o cântico:
Da vara nasceu a vara,
Da vara nasceu a flor;
Da flor nasceu Maria,
De Maria o Redentor.
Mesmo já depois de passar a função de sacristão, mantinha-se sempre atento ao que se passava na igreja. Não lhe passou despercebida a vela nas mãos de um rapazito, o Tó Matias, que incendiara o invólucro de papel, para desespero do portador, que não conseguia apagar o incêndio e já se contorcia com as dores do escaldão que lhe tolhia a mão. Bem a mudava de mão o Tó e soprava a ver se a vela se apagava. Mas nada. Até que se ouve da igreja uma voz grossa e imponente:
– Abafa-a, corno!
Foi uma gargalhada geral dentro da igreja, não obstante o sagrado do lugar. Resultou? Claro que sim! Uma ordem daquelas foi prontamente executada e o fogo, abafado, expirou! Creio que o fogo também se riu e, com a boca aberta, apagou-se.
Será que o Zé Tchebinho, nisso de abafar, tinha aprendido com o fogo das Eiras nos finais dos anos cinquenta, quando a máquina de malhar substituiu os manguais, tirando o suor aos malhadores que, em duas filas de sete ou oito, face a face, brandiam os manguais com destreza, mas trazendo lume consigo nas faúlhas que expelia e que acabariam um dia por pegar fogo às medes do pão, bem feitinhas com arte, mas quase contíguas? Esta circunstância teria sido fatal para todas as medes, não fora ter aparecido o então sargento Tó Cipriano que mandou aplicar os métodos aprendidos na tropa para apagar incêndios.
– É preciso atabafar o fogo com terra! Toca a escavar as eiras e deitar a terra para cima das medes!
Foi prontamente obedecido e com isso salvou algumas medes e relheiros e evitou que a tragédia, a que se seguiu a miséria, fosse maior. Em vez de uns tantos andarem a pedir pelo povo, saca na mão, que, por caridade, ajudassem com um alqueire de pão ou o que quisessem dar, como o Quim Telvino, a quem nada sobrou, teriam sido muitos mais e não haveria quem tivesse pão nas arcas para ajudar os infelizes.
Desastre tão grande não teria lugar se o fogo tivesse surgido numa eira mais pequena, como a do ti Manal ao Santo António. Ou noutra pequena eira, como a do Alcambar de baixo, cujas lajes foram desviadas pelo então presidente da Junta Rui Meirinhê para fazer casa própria ou da filha, segundo é voz corrente na terra, sem ter de as arrancar das pedreiras.
Quantas vezes O Zé Tchebinho lá no céu terá já dito aos anjos:
– Cuidado com o fogo das velas! É melhor deixar São Pedro às escuras, não vá o diabo tecê-las.
Terá dito a algum anjo mais descuidado que tenha deixado pegar fogo às asas:
– Abafa-as, corno!, expressão seguida de uma risada monumental na corte celestial?! Já imaginaram o que seria um fogo no Céu?!
Passo a relatar outra parte passada com o Zé Tchebinho.
Até meados dos anos cinquenta, na Semana Santa faziam-se procissões em que se representavam ao vivo algumas cenas da Paixão de Cristo. Na Sexta -Feira Santa fazia-se o sermão do encontro, onde figuravam a Verónica, Maria Madalena e outras figuras bíblicas, com o Divino Manso Cordeiro levando a cruz às costas, atado com cordas para não se desequilibrar ou soltar-se a cruz, ou o Senhor no esquife. Faziam-se três sermões nessa procissão: um nas escaleiras da casa do Manel da Cruz, a uns vinte e cinco metros após a Cale Fundeira, outro na varanda da casa do Sr. Zezinho, o sermão do encontro, com a Senhora das Dores vinda de outra rua ao encontro de seu Filho, e outro na igreja, o sermão da soledade. Vestia normalmente de Maria Madalena a Pitagala e de Verónica a Bajé Presas.
Bem poderiam trocar os papéis, já que a Bajé Presas teria muitos pecados presentes ou futuros para deles se arrepender, pois que haveria de se associar ao Furmino Tchóreceiro, vindo dos lados de Trancoso por prática de homicídio, segundo dizem, para a prática do roubo de quem fizera matança.
Era mordomo do Senhor nesse ano o pai da Rosalina Bota e outro, que iam de opas pretas, e pregador o padre Cavacas, natural do Ozendo. Da varanda da casa do Sr. Zezinho, ao ver o Divino Manso Cordeiro atado com as cordas, grita o pregador:
– Quem foi o ladrão que te arreatou?
O pai da Rosalina Bota, por ser mordomo, pensou que o padre se estava a referir a ele e responde em alta voz:
– No fui eu! Foi o Zé Tchebinho!
Apesar do sagrado do momento, ninguém conseguiu aguentar a risada.
Era o Zé Tchebinho, sacristão, quem preparava tudo, ajudado pelo marido da Nunciação Rata, exímio em pregar e despregar da cruz o Senhor.
O sermão da soledade, já na igreja, esteve, por muitos anos, a cargo do padre Fatela, bem anafado, que se gabava de fazer chorar as mulheres de Quadrazais.
Não seria muito difícil esta proeza, já que as nossas mães e avós, pessoas piedosas, se condoíam com as cenas do sofrimento de Cristo, exageradas pelo padre Fatela em sermão inflamado, à maneira do séc. XVIII.
Coitadas das nossas mães e avós! Como não haveriam de chorar vendo a imagem da Senhora das Dores contemplando seu filho Jesus morto e cuja imagem estampada no véu da Verónica ela apresentava ao padre no púlpito, que ele teatralizava, se esta lhes lembrava a morte de tantos dos seus filhos em tempos em que faltavam os medicamentos contra tifos e outras doenças que vindimavam crianças às dezenas, como no ano de 1942?!
Aí por 1960, o padre Fatela enfatizava as mortes dos nossos soldados ou emigrados em Angola. Havia pouco tempo que havia sido morto no norte de Angola o Zé Manel, filho da Gija Prazeres. É claro que o choro era inevitável.
Notas:
Atabafar – abafar.
Furmino – Firmino.
Gija – hipocorístico de Luísa.
Jaquim – hipocorístico de Joaquim.
Manal – hipocorístico de Manuel.
Mede – meda.
No – não.
Nunciação – Anunciação.
Pitagala – alcunha de uma quadrazenha recentemente falecida.
Quim – hipocorístico de Joaquim.
Relheiro – rolheiro.
Telvino – hipocorístico de Etelvino.
Boa tarde. Sou José Vaz, de Vale de Espinho. Li este texto até ao fim e sempre a rir porquanto a primeira estória do Tzé Tchebinho (que não conheci) ouvi-a contar inúmeras vezes aos amigos Zé Soares e Zé Ferro. Eu próprio a adotei, pois também gosto muito de contar estórias das nossas gentes ( de Vale de Espinho, dos Fóios, do Soito e outras). Também identifiquei o nome/alcunha da ti Pitagala (que também não conheci). Depois de tudo isso senti-me uma adolescente. Abraço ao autor e editores.