Donde lhe veio a alcunha? Confesso que não sei. Certamente se dirigiu a alguém para que lhe trocasse uns duros, moeda espanhola equivalente a cinco pesetas, que a mãe trouxera das suas frequentes visitas a Valverde.

O Zé Miguel Finote cedo ficou órfão de pai, um dos primeiros emigrantes para França, juntamente com o Zé Jaquim Cabral e o Zé Luís, nos anos cinquenta, antes do grande despovoamento rumo a França dos anos sessenta. Numa queda nas escadas da casa onde vivia, sob o efeito da pinga, de que bem gostava, terminou os seus dias, sem ter ganho e enviado para a família o dinheiro de que esta necessitava.
Tempos de vacas magras, anteriores aos tempos das vacas gordas que se seguiram e de que falava o Vinagre, elogiando o bendito Deus francês que dá capota de sola e botas de borracha.
A mãe, com quatro filhos a criar, bem calcorreava os caminhos pedregosos que levavam a Valverde, descendo e subindo as barreiras da Marvana e Marvaninha, donde trazia para casa algum pão e alguns artigos que ia vender na Covilhã, onde se produziam muitos tecidos, mas não as cobertas espanholas nem as roupas interiores e as mantilhas do país vizinho.
Vida dura a de mãe que tem de alimentar a sua e mais quatro bocas! Da França não vinha nada.
Trabalho do campo não era para o Zé Miguel, que lá ia deitando a presa da Marbeites, de vez em quando, trabalho que o João continuou quando aquele procurou dar um rumo à vida.
Certo dia foi visitar o renovo nas terras do Vale d’Asna. A geada tinha abrasado tudo.
– Como é possível que o frio queime?
Mas queimou mesmo. As couves tronchudas ficaram cozidas.
Voltou para casa a pensar naquele fenómeno da natureza. Não acreditava que o frio cozesse ou abrasasse as couves. Lembrou-se do que ouvira na véspera na igreja. O Papo Seco tinha cantado o «Abrasai, abrasai». Sim, ele tinha pedido a Deus para abrasar tudo.
– Ai dele, se o apanhasse ali!
Encontrou-o à entrada do povo.
– Donde vens, Zé Miguel?
E ele, agastado, mais do que quando deu uma chuvelhada no Maregas, feito aplaudido pelo neto do ofendido, ainda criança, retorquiu-lhe mal humorado:
– Venho do Vale d’Asna. Lá ficou tudo abrasado. Tanto cantou na igreja o abrasai, abrasai, que abrasou tudo.
– O diabo toma sentido em tudo! – Foi a resposta do Papo Seco, antes de se meter em casa.
O Balel tinha morrido ainda com doze anos, quando ia à Eirinha pregar uma partida a mim e meu irmão, que guardávamos a vinha em tempos de férias escolares. Apareceu morto à Lavandeira, segundo uns afogado por um filho do Álvaro, facto que não se conseguiu provar, por ter bebido de bruços água envenenada pelo Gamixane deitado às batatas para lhes matar os escaravelhos e que contaminara a fonte da Lavandeira, segundo outros.
O Zé Miguel já com os seus dezoito anos foi iniciado na ambulância por meu pai, seu tio, a pedido da mãe. Também não se adaptou a esta vida que exigia sacrifícios e dotes de vendedor, que ele não possuía, onde deveria trocar escudos e não duros. O sonho do Troca Duros era conduzir um carro a cento e vinte à hora.
Tinha ele ido baixar as calças ali para os castanheiros da Cova quando foi apanhado com a boina na mão a fazer de guiador e a produzir sons do carro em grande velocidade:
– Já vai a cento e vinte!
E «Cento e Vinte» lhe ficou a nova alcunha.
Livre da tropa, com as portas da França a serem franqueadas por passadores lá da terra, como o Tó Bola e pai, o Manolo, o Lázaro e um sócio italiano, o Valter, aí vai ele à procura dos restos mortais do pai que nada lhe mandou para mitigar a fome, quanto mais para lhe realizar o sonho de ter um carro que ele conduzisse a cento e vinte à hora.
Ah! Era agora, já em França, que o nosso Zé Miguel iria realizar o seu sonho. Consta que ainda andou nas obras a deitar goudron sobre os terraços para os impermeabilizar. Trabalho que não criava calos e de que muitos quadrazenhos se gabavam quando vinham à terra mostrar as mãos de détor, sem rugas nem calos, nem que tivessem de passar oito dias sem trabalhar, até que os calos saíssem.
«Aquilo é que era terra! Ganhava-se bem sem se fazer quase nada!»
Passados poucos anos, tendo já amealhado o suficiente para comprar o seu carro de sonho, mas sobretudo para ter o prazer de conduzir a cento e vinte, consegue licença de taxista. Profissional de condução! Veríamos se podia dar os cento e vinte em Paris! Se não, quando viesse a Portugal por aquelas estradas planas e rectas das Landes, aí é que seria a prova dos nove, ainda que tivesse de arriscar uma multa dos gendarmes.
Que loucura andar a cento e vinte! Que gozo ver a estrada a andar para trás a uma velocidade estonteante! Chamassem-lhe agora Cento e Vinte, que ele não se importaria, porque agora já andava mesmo a cento e vinte e não apenas em sonho.
Satisfeito o sonho, transformado em realidade por longos anos, já com assomos de Alzeimer, é tempo de regressar às origens. Chega de cento e vinte! Quem sabe se não chegou aos cento e quarenta! Na idade é que nem aos cento e vinte chegará. Também já não precisa trocar duros, aliás já inexistentes, trocados agora por euros. Lá trocará os seus euros nalguma mercearia ou café do Montijo, onde se instalou com a mulher Ludovina, alentejana de Brotas.
O filho, com o seu nome traduzido para Michel na língua da terra que os acolheu, lá continua em Paris onde nasceu, sem sonhos de conduzir a cento e vinte, com emprego de doutor e sem correrias ao volante, trocadas por repousantes viagens de avião nas suas deslocações a Portugal, em serviço ou apenas em visita a sua mulher portuguesa, para não esquecer a terra dos pais.
O João Barrocos, alcunha devida ao padre João Barroca, famoso miguelista de Aldeia da Ponte, não acabou a escola, que letras já sabia demais como o provou um dia no comércio do ti Saloio, na rua de São Sebastião, em frente à Cale Fundeira, quando lhe meteram nas mãos um jornal e lhe pediram que provasse que sabia ler. Não se fez rogado e disparou:
– O melhor comércio é o do ti Barreiro, a melhor sapataria é a do ti Tozinho. Três puntinhos, três puntecos! – rematou.
Para ele estava ali escrita a realidade de Quadrazais, o seu mundo. Que interessavam as Lisboas ou os Portos donde vinham os jornais? Que interessava o que dissessem os jornais, se não falassem no seu mundo? Reticências na sua vida era o que eram aqueles três puntinhos, três puntecos.
Farto da bóvida que levava, porque trabalho do campo também não fora feito para ele, salvo ir regar ao Vale d’Asna ou deitar a presa da Marbeites, atraído pelos francos que via nas mãos dos seus quintos, de férias em Quadrazais, de quem bebia alguma cervejita, põe os pés a caminho e demanda terras de França.
Não chegou lá à primeira, que os malvados carabineiros o apanharam e o meteram à guarda de um mosteiro em Pamplona, porque ainda era menor. Aí o conheceu um futuro professor meu em Vila Viçosa, o padre Edmundo da Congregação do Preciosíssimo Sangue. Mas, à segunda foi de vez. Lá arribou a Paris, onde o goudron o esperava. Aí perdeu os maus hábitos da bóvida e deu-se ao trabalho, que era preciso alimentar a Florinda, com quem entretanto casara, os filhos João e Florinda e talvez mais algum, que entretanto tiveram.
Deixou-os cedo. Tal como o pai, morreu de um tombo, mas não sob o efeito do álcool e não de umas escadas. Caiu de um andaime da construção em que trabalhava, por ter desmaiado, segundo alguns. Os filhos e mulher lá terão a sua pensão, bem boa num país rico, que lhes permitirá olhar para o céu em agradecimento ao pai, que aí não encontrará barrocos para lembrar a sua alcunha.
No céu já terá tido tempo de aprender a ler os jornais de São Pedro, sem três puntinhos, nem três puntecos!
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Notas:
Baixar as calças – fazer as necessidades.
Bóvida – boa vida, sem fazer nada.
Détor – doutor.
Chuvelhada – pancada com uma chavelha.
Gamixane – remédio para os bichos das batatas.
Goudron – Alcatrão.
Renovo – plantações de batatas, couves, feijões, etc.
Três puntinhos, três puntecos – reticências.
Histórias de vida que a vida nos dá! A vida das nossas aldeias reportada às décadas de cinquenta e sessenta é fértil em histórias desta natureza e quando contadas no estilo tão peculiar do Franklim Costa Braga, mais aliciantes se tornam e se transformam em autênticas gestas por que passaram os nossos antepassados. É bom que fiquem para a posteridade!
Dá gosto saborear tão bela prosa….parabéns ao Autor!