Estávamos longe dos carnavais de agora, com actores de telenovelas brasileiras bem pagos a servir de primeiras figuras, com escolas de samba brasileiras ou já portuguesas imitando aquelas a desfilar em carros alegóricos de festividades, de factos políticos ou factos históricos, em trajos carnavalescos ou da época a que se reportam os factos.

O Entrudo, e não o Carnaval, em Quadrazais era genuíno. Era o Entrudo trapalhão, genuinamente português.
Lembrou-se o Balhé Sant’André de casar em tempos de Entrudo. Não havia dinheiro para luas-de-mel nesses tempos de penúria. A noite de núpcias era passada na casinha onde iriam morar, à Ladeira, junto da do Tchóreceiro, casa térrea e pequenina, que hoje já não deve existir, pois de duas ou três derrubadas fizeram uma ampla e com condições de habitabilidade.
Bendito Deus francês que dá capota de sola e botas de borracha, como dizia o Vinagre!
Altas horas da noite, deveriam estar os noivos nas suas justas intimidades, começam uns tantos cá fora a gritar:
– Ó fogo! Ó fogo!
E lá vêm os vizinhos com caldeiros de água para apagar o fogo deitado propositadamente a uma facha de palha colocada à porta dos recém-casados, pois que ao grito de – «ó fogo!» – o quadrazenho, qual bombeiro com o sentido de solidariedade, vinha imediatamente ajudar a apagar.
E os pombinhos lá tiveram de se levantar e vestir-se à pressa, como para fugir. Ao verem a entrudada, só não amaldiçoaram quem pôs o fogo, porque o Balhé Sant’André reconheceu meu pai entre os gritantes, pessoa que ele respeitava por lhe dar bastas vezes trabalho.
Meu pai, o Tó Braga, era muito amigo de acusar o Entrudo. Empurrava as portas e vá de deitar para dentro delas porcaria que as sujasse. Alguém descontente lhe atirou à cara que só fazia isso aos pobres.
– Ai, sim! Já vão ver!
Vai ao forno do Sr. Zezinho, ao Cimo, pega no varredoiro, unta-o bem untado na cinza, vai-se a caminho da casa do dono do forno e bate-lhe à porta.
Mal o Sr. Zézinho abre a porta, entra ele e começa a varrer a casa com o varredoiro todo sujo.
– Tome lá, que é para não dizerem que eu só faço partidas aos pobres!
E lá ficou o Sr. Zézinho com a casa toda suja e pouco satisfeito.
Doutra vez, vestiu-se de mulher, pegou em mim e na Maria, meteu-nos nos alforges que colocou em cima do macho e manda-nos gritar:
– Temos fome! Temos fome!
Ele, que levava um boneco ao colo a fazer de bebé, toca a pedir às mulheres que dessem de mamar ao bebé, chegando-lho ao peito.
Lembro-me de outra partida de meu pai. Pegou em três paus a fazer de tripé, prega-lhe um pequeno caixote em cima, na mão uma lata de água e lá dentro uma borracha dessas de deitar água nos ouvidos para tirar a cera ou matar o bicho do ouvido, como lá diziam. Mete-se rua fora e, à Praça, começa a pedir a este e àquela que se pusesse em posição de lhe tirar o retrato, imitando os verdadeiros retratistas que por vezes apareciam na aldeia e utilizavam um aparato semelhante.
Quando alguém se prestava à fotografia, do buraco saia uma bisnagadela de água que o deixava todo molhado.
– Ah! malvado Tó Braga!
Minha mãe é que não gostava nada das suas partidas, sentindo vergonha do que ele fazia. Em dias de Entrudo não saia de casa.
Lembro-me de uma outra entrudada protagonizada pelo Menal Zé Jinjo e o cunhado Quim C’stantino, ambos de cara tapada. O primeiro levava um pulverizador cheio de água. O segundo transportava uma saca de cagalhões. Rua fora, o segundo ia espergindo cagalhões, como se fosse adubar um batatal, e o primeiro, com um pulverizador às costas, ia deitando a calda para matar os escaravelhos das batatas.
Ao menos aqui, o tempo entre a adubagem da terra e a quase colheita das batatas era muito curto. Inventaram estes entrudos a maneira de Quadrazais ser rico, já que daria três ou quatro colheitas ao ano.
Outra maneira de acusar o Entrudo protagonizou-a o Zé d’Aldeia Velha.
Viera de Aldeia Velha para criado do ti Barreiro, com cujas vacas tratava de lavrar as terras do patrão. Rapaz novo ainda, faz amizades com os quadrazenhos e festejava o Entrudo com eles. Era ao Vale que se fazia a tourada no dia 17 de Setembro, último dia das festas de Santa Eufêmia.
Mas, por que não fazer no Vale uma tourada fora de época?
Cobre-se o Zé d’Aldeia Velha, também terra de capeias, com uma capa ou manta que o tapava todo, arranja uns cornos de vaca ou de carneiro que, para o efeito, tanto dava, e vá de correr atrás da rapaziada, que aproveitava para tentar as artes do toureio, desta vez sem as varas compridas com aguilhão na ponta com que picavam o boi.
Tudo acabava nuns copos amigos.
Nesse mesmo Vale, pelo Entrudo, balhava-se ao som da concertina, deitavam-se fitês, as serpentinas das cidades, que a miudagem enrolava em galhadas levantadas ao alto em rodopios, a ver quem apanhava mais. Guardavam-nas em jarros durante a Quaresma, época em que não devia haver manifestações de folia. De vez em quando alguém lançava um rebuscapés que amedrontava alguns.
No intervalo a rapaziada bebia umas cervejas. Por vezes faziam-se umas apostas.
Num desses intervalos do balho, apostam com o Zé Ruvino se era capaz de tirar as calças em pleno largo, diante das raparigas e observadoras do balho, rodando duas ou três vezes. Receberia cem escudos pelo feito.
Não era coisa digna e talvez as moças deixassem de olhar para ele.
Mas, cem escudos! Uma nota! Valor de cinco dias de trabalho ou de duas ou três noites na raia!…
Claro que aposto!
E não se fez rogado. Afrouxa o cinto, deixa cair as calças e ei-lo em ceroulas brancas a rodopiar.
Não sei se honraram a aposta. Mas, como não houve pancadaria, deve ter recebido os cem mil réis.
Notas
Tchóreceiro – figura típica de Quadrazais que se dedicava a roubar chouriços.
Valhé – hipocorístico de Manuel;
Balho – baile.
Balhar – bailar.
C’stantino – forma de pronunciar Constantino.
Espergir – espalhar.
Fitês – serpentinas de Carnaval.
Menal Zé – hipocorístico de Manuel José.
Rebusca-pés – bombinhas de Carnaval, não com mau cheiro mas com rastilho de pólvora que as fazia rodopiar.
ha o entrudo de entao que saudades desses tempos continuen a lembrarnos os nossos tempos de juventude muinto OBRIGADOS