Viver numa comunidade rural de dimensão pequena obriga todos a desempenharem tarefas comunitárias. Quanto mais pequenas eram essas comunidades maior era a necessidade desta união, para garantir a subsistência da comunidade.
Na generalidade das aldeias rurais, a circulação de pessoas e animais, efectuava-se através de caminhos de terra batida. Por vezes alguns troços eram feitos em calçada rústica. Em aldeias em que a sua envolvente é relativamente plana, os caminhos não necessitam de manutenção tão frequente como acontece noutras situações.
Nas aldeias localizadas em encostas de montes, estes caminhos necessitavam amiúde de serem objecto de obras de conservação, pois as frequentes chuvadas com que a região é contemplada no inverno, provoca nos caminhos uma erosão que acaba por danificá-los.
Os caminhos que partem das aldeias, se dirigem aos campos, se desviam de obstáculos naturais serpenteando pelas encostas eram a única forma de deslocar pessoas e animais entre a aldeia e as terras de cada um.
Tendo estes caminhos para as pessoas das aldeias a importância que hoje têm para todos, as estradas, era natural que houvesse uma permanente preocupação por manter esses caminhos no melhor estado de circulação possível.
Por isso, quando o verão terminava, e os últimos trabalhos campestres estavam no fim, era altura de começar a pensar em formar equipas para tratar do arranjo anual dos caminhos rurais.
Por norma formavam-se várias equipas conforme as terras que cada um possuía e que eram acedidas pelos caminhos que agora se iriam reparar.
Não posso deixar de fazer uma referência à diferente postura que as pessoas tinham na altura relativamente a este tipo de trabalhos comunitários quando comparamos com os tempos actuais. Na altura as pessoas não punham sequer a hipotese de, para esse tipo de tarefa questionar o poder. Hoje, perante qualquer anomalia a primeira preocupação não é resolvê-la mas sim questionar quem a resolva (Câmara ou Junta de Freguesia).
Não quero com isto tomar partido sobre qual a postura mais correcta para o mesmo problema. Mas, como costumo dizer, provavelmente será no meio termo que poderemos encontrar a resposta.
No dia combinado, logo no principio do dia, alguém tocava o sino, por forma a avisar todos que iria ter inicio a tarefa que tinham combinado. Reparar determinado caminho. Nos momentos que se seguiam era visível a afluência dos homens para o local de destino. O equipamento que cada um transportava era o necessário para o desempenho das tarefas que se iriam fazer: Uma enxada, um malho, eventualmente uma tesoura de podar não fosse necessário, e por norma era, cortar alguma silva.
Mas, dirão os leitores mais jovens: Então quem tinha que reparar os caminhos eram as pessoas? Para que serviam as instituições como a Câmara Municipal ou a Junta de Freguesia? Pois é, caros jovens, felizmente que vocês pertencem já a uma geração de pessoas que coloca questões dessas, mas que, naquela altura não passava pela cabeça das pessoas colocá-las quer por não existirem instituições como as que hoje possuímos quer por a própria mentalidade das pessoas estar orientada para a sobrevivência e, em situações dessas, o espírito de grupo e comunitário são o bem maior.
As pessoas, entendiam que os problemas locais da sua terra devem ser, sempre que possível, resolvidos pelas próprias pessoas. Se um muro caía e impedia a circulação num caminho, a população reparava-o; Se numa enchente maior as poldras porventura cedessem, na primeira oportunidade e logo que a água o permitisse desencadeava-se a reparação. A Câmara ou a Junta de freguesia apenas eram “convidadas” a intervir quando as situações eram demasiado pesadas para poderem ser resolvidas pelas pessoas locais.
Por isso a reparação dos caminhos era uma tarefa rotineira e anual e na qual todos participavam.
Mas então em que consistia a reparação dos caminhos?
Primeiro de tudo é conveniente perceber que estamos a falar de caminhos de terra batida, em encostas íngremes e que por força da chuvas invernais a água se encarregava de estragar com a sua corrente mais ou menos forte. Estamos a falar de caminhos em que o chão era por vezes formado por afloramentos graníticos que emergiam, ou que, no chão foram sendo destapados pela chuva e pelo decurso do tempo.
Isto é, a chuva que ia caindo e iniciava o seu deslocamento no sentido natural da corrente por força da gravidade – a água corre para baixo – era natural que com ela deslocasse areia, terra, folhas, que no fundo eram componentes do chão do caminho.
Talvez por isso, os caminhos de terra batida nas zonas íngremes eram e são artificialmente atravessados por pequenas saliências de terra e pedras pequenas misturadas que formava uma espécie de goma destinada a interromper a corrente da água quando chovia e a diminuir o caudal e a velocidade com que a mesma circulava ao longo do caminho. Essas gomas e o correspondente rego eram por norma feitos de forma inviezada e desaguavam nos terrenos laterais ao caminho, por norma o mais baixo, através de buracos que se faziam quando a parede, de pedra solta, era feita a que se chamava os Bueiros.
A reparação destes caminhos passava assim, essencialmente por limpar de ervas, silvas e outros arbustos o próprio caminho e por outro lado, limpar os bueiros e, com a terra que se tirava, reconstruir, com a ajuda de pedras pequenas as gomas que irão ajudar a mantê-los durante o inverno. Os trabalhos eram executados com a ajuda de muito poucos objectos e quase sempre os mesmos: roçadoira, malho, enxada.
As terras que se retiravam dos bueiros eram espalhadas pelo caminho por forma a manter o chão regularizado e mais transitável.
Concluído o arranjo de um caminho, outro se seguiria, por norma num dia diferente pois cada caminho tinha uma direcção própria que se não confundia com a de qualquer outro (a partir da aldeia, o caminho da ribeira tem uma direcção contrária ao da Parada).
O espírito de união entre todos os habitantes destas aldeias era o bem maior que se manifestava principalmente nestas tarefas comunitárias que no fundo, por muito simples que possam parecer, garantiam a sobrevivência daquela comunidade.
Para nós, hoje, este tipo de discurso parece algo irreal, e do outro mundo pois a evolução que as coisas tiveram mesmo no meio rural, levam muitos a pensar que se trata de exagero na linguagem, pois essas situações não aconteceram.
Pois é, mas aconteceram mesmo. E fazem parte de um tempo que quem o viveu por ele ficou marcado para o resto da sua vida mas que quem por ele não passou, dificilmente acredita que tenha acontecido.
Seja como for, a nossa história colectiva não é feita apenas de situações agradáveis. As desagradáveis também fazem parte dela e por isso, as páginas que a descrevem fazem parte do mesmo livro que ninguém deve truncar pois só assim é um livro.
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«Do Côa ao Noémi», crónica de José Fernandes (Pailobo)
Caro ACunha:
Obrigado pelo seu interesse. Quem se dedica à “coisa pública” por norma é quase sempre criticado e muito poucas vezes reconhecido.
Mesmo hoje, os caminhos são essenciais para circular entre os campos seja para cultivar o pouco que se produz, seja mesmo para visitas de natureza turistica e de lazer. Não desanimemos, e sejamos persistentes nas nossas convicções.
Um abraço
JFernandes
Uma ótima mensagem. Não só, para os mais jovens, mas principalmente para aqueles que atualmente não sendo assim tão jovens, mas de memória curta, e que mais precisam dos caminhos e em vez de abrirem os bueiros ainda os tapam para que os caminhos se danifiquem mais rápido, para com mais convicção, poderem dizer que as juntas não fazem nada. Com os tempos que correm, só espero que não tenhamos que voltar aos tempos que o autor tão bem descreve para garantir a subsistência da comunidade, ou corremos o risco de qualquer dia determinados caminhos deixam de o ser porque se tornam intransitáveis.