Depois de na semana passada o ter feito gastar uns minutos com o brasão do Morgado, hoje vou tentar fazê-lo a si, leitor, «ver» pelos meus olhos e ouvidos o que era de facto aquela importante Quinta de Santo Amaro. Se o conseguir, tenho a certeza de ter ajudado a que se perceba melhor e se possa preservar melhor aquele milésimo das memórias do Concelho. Conto consigo para isso.

Um dos grandes estudiosos da realidade concelhia do Sabugal foi sem dúvida Joaquim Manuel Correia. Hoje vou comparar o que ele escreveu com o que existia na Quinta de Santo Amaro de que me lembro. É a minha forma de singelamente me associar às narrativas históricas daquele micro-cosmos que foi Santo Amaro.
O Santo Amaro que eu conheci
Primeiro ponto de aviso ao leitor: o Santo Amaro que eu conheci é naturalmente o da minha meninice e adolescência (anos 50-60). E esse Santo Amaro «faz» algumas diferenças em relação ao Santo Amaro de Joaquim Manuel Correia, que aqui vamos acompanhar parágrafo a parágrafo, se concordar.
Assim – e é a primeira diferença que quero assinalar: a Quinta de Santo Amaro dessa segunda metade do séc. XX não era foreira nem as pessoas que lá residiam eram rendeiros que pagassem renda ao Dr. Tavares de Melo.
Pelo contrário: as terras eram todas dele, do Morgado, e os residentes eram criados da Quinta (na altura, empregados ou trabalhadores não eram palavras que se aplicassem a estas situações). Muito mais tarde, houve, sim, um feitor. Antes disso, ao que ouvia na época, quem orientava tudo era uma criada da casa.
Mas, quando eu era «menino e moço», mandavam ali dois arrendatários, esses, sim, grandes agricultores e grandes cabeças para as sementeiras e a rentabilização de cada hectare de Santo Amaro: os irmãos Urbano Nunes e David Nunes. Os quais também tinham uma grande propriedade sob sua orientação total em Perais, concelho de Vila Velha de Ródão, Castelo Branco.

O regime de propriedade
Ora, a este propósito e em matéria de regime de propriedade, Joaquim Manuel Correia / JMC escreveu (em 1926, data provável de escrita do livro que no entanto só seria publicado em 1946): «A povoação de Santo Amaro era toda foreira (ou paga ainda) ao Sr. Dr. Tavares, que ali tem, além da vivenda, extensas propriedades que deu de arrendamento a longo prazo».
A frase foi escrita à pressa, seguramente, pois o que está entre parêntesis («ou paga ainda») ficou incompleto: JMC deve ter querido escrever «(ou seja: pagava foro, ou paga ainda)». Isto é o que eu acho – e já explico adiante o que era o foro.
Tentando explicar de modo simples o que JMC nos deixou nesta frase, direi que pagar foro era na prática pagar uma renda de longo prazo.
«Foro — quantia ou pensão paga anualmente pelo enfiteuta de uma propriedade ao senhorio direto» (e digo eu: enfiteuta era o beneficiário da ‘enfiteuse’, um instituto jurídico que adiante explico). E o que era então a enfiteuse? É um direito que corresponde ao «arrendamento por prazo longo ou perpétuo de terras públicas a particulares».
Por último, e em relação à mesma citada frase de JMC sobre Santo Amaro, chamo a sua atenção para o facto de ele chamar àquela meia dúzia de residências uma «povoação». Acho um exagero. Para ser povoação, sinto que era preciso que tivesse muito mais gente a residir lá – acho eu: é assim que sinto a palavra povoação. E sempre lhe ouvi chamar «quinta». Mais nada. JMC que me perdoe a aleivosia, mas é o que sinto quanto ao uso rigoroso da palavra «povoação».

O Morgado
O Morgado era o Doutor de Santo Amaro. Tavares de Melo. Nunca falo ou escrevo disto que não me salte logo para a frente da memória aquela campa de luxo no cemitério do Casteleiro – campa digna do Cemitério dos Prazeres ou do Alto de São João. É logo à esquerda, quando se entra e lá está gravado o seu nome completo.
Mas afinal quem era esse Morgado de Santo Amaro de que tanto se fala e que enchia alguns mitos e lendas da minha meninice?
Contava-se que não tinha acabado o curso de Direito. Alguém terá dito um dia a propósito disso: «Basta terem ido uma vez a Coimbra… já são doutores», e era, para todos ele era «o Doutor de Santo Amaro»!
Mas o investigador que vimos seguindo afirma que sim, que era licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
O Morgado era uma personagem forte, mas um «bon-vivant», com a resposta pronta para tudo na ponta da língua e com piada nos seus ditos – esse era o mito, sei lá…
Sobre ele, JMC fala especificamente assim:
«Formado em direito pela Universidade de Coimbra, nunca precisou de utilisar-se das cartas por ter avultada fortuna; mas, além de notável «sportman», é artista distintíssimo, sendo digna de visita a sua belíssima vivenda. Os seus trabalhos de torneiro em madeira e marfim são perfeitíssimos, tendo sido premiados em exposições».
Teria pois mais alma de artista do que de advogado ou jurista. Seria mais desportista do que agricultor ou gestor da sua propriedade vastíssima e muito rica.
Cito outra vez Joaquim Manuel Correia que, já em 1920 e tal escreveu sobre os produtos daquela verdadeira «lezíria» da Beira: «São de notar as saborosas melancias, criadas nesta quinta, sempre as primeiras, maiores e mais saborosas que aparecem à venda nas feiras e mercados dos concelhos limítrofes. Têm igualmente grande fama os queijos de Santo Amaro». E não falou ele do que nós víamos ao tempo da minha primeira juventude: campos de centeio e trigo e grandes batatais espalhados pelas baixas de Santo Amaro.
Uma remissão necessária: é justo referir que as citações de Joaquim Manuel Correia foram retiradas directamente do «Capeia». Veja… (Aqui.)
Observação pessoal dos anos 50-60
Por outra parte, vale a pena deixar aí esta nota de observação pessoal do tempo em que era muito pequeno e tudo me impressionava.
Em Santo Amaro eram as regueiras o que mais se me metia pelos olhos dentro.
Conheço bem os dois caminhos de acesso: um quando se vem de Caria e se sobe junto dos grandes estábulos doa Quinta; outro quando se vai do Casteleiro ou de Sortelha para Caria, subindo junto das casas dos trabalhadores e depois chegando à Casa Grande do Morgado.
Conheço bem cada uma das três ou quatro ruas ali antes do largo principal e depois a rua de trás, que circunda a casa grande e vai para as primaveras e alguns redis de ovelhas.
Ovelhas, vacas, cabras… havia lá de tudo. Batata, cereais (centeio, trigo, milho, aveia)… de tudo. Melancias, de facto enormes e vistosas, como 30-40 anos antes já era visto por Joaquim Manuel Correia.
Mas o que mais me impressionava era o poço enorme ao pé do ribeiro, junto da ponte na estrada nacional e, sobretudo, as grandes valadas de água que, ao longo da estrada, levavam a água para a rega pelos campos fora, ao logo daquela baixa enorme e sempre fértil e sempre muito cultivada – tipo agricultura intensiva…
São imagens de infância que perduram para sempre, estas.
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Notas
1. Em 25 itens das fichas de leitura e comentário, hoje, 21 de Setembro de 2014, o número de referências à palavra Casteleiro impressiona-me e orgulha-me: 10 (40%). Mas a estas é justo que acrescente mais 4 referências (relativas a quatro comentários inseridos por mim próprio). Ou seja: 14 presenças em 25 possíveis (cerca de 55%). Fico mesmo babado com estas coisas. Para confirmar o que constato, siga por… (Aqui.)
E lembrar-me eu de que quando, há uns anitos, comecei esta tarefa, quase não havia Casteleiro dentro do «Capeia». Obrigado, amigos do «Capeia», por esta oportunidade de ajudar a pôr a minha terra a brilhar nesta plataforma da região…
2. Por razões pessoais mas também de justiça, não me canso de elogiar o Lar da minha terra. Mas veja você mesmo/a com os seus olhos. Dirigentes, equipa e serviço de qualidade. Tudo merece referência elogiosa. Para ter mais informação, por favor visite este artigo, no «Viver Casteleiro»… (Aqui.)
3. Para aceder a notícias no «Serra d’Opa», agora no «Facebook», siga por… (Aqui.)
Esse senhor doutor de Santo Amaro era um grande porco! Abusou de mulheres e crianças! Com dinheiro tudo se paga!
Obrigado pela nota. SE nos quiser contar mais histórias dos seus familiares aqui nascidos, agradecemos.
Cumpts
JCM
Com muito prazer de ler o texto sobre à quinta de santo amaro onde eu naci nos anos 1957
Familia prata e meu avo antonio gîta
Que Toda à gente cognecia
Gostava de fazer conhecimentos das pessoas que viveram Nesta quinta com muito recordacao
Desculpas dà minha éscriture Ja esqueci muito
Eu vivo em franca
Espero ter resposta da parte do shr José Carlos mendes
Parabens do texto
Cumprimentos
Meus d’ados tel 0033625853361 prata Vitorino
Caro Vitorino, obrigado por «dar à costa» (se calhar não percebe isto. Quer dizer: obrigado por escrever o comentário)… Quando você nasceu eu tinha 9 anos e ia muitas vezes com o meu pai à Quinta. Tenho uma vaga ideia de um senhor Prata que lá trabalhava como pastor, se não me engano. Gita, não me lembro, sinceramente. Se eu puder recolher mais informações, transmito-lhas, OK? Um abraço.
Agora em francês, para não ter dúvidas (peço desculpa por algum erro):
Cher Vitorino, merci de votre comentaire. Quand vous êtes né, j’ avais 9 ans et j’allais souvent à la Ferme. Je me rapelle d’um monsieur Prata (je crois qu’il était l’ un des bergers. Le nom Gita ne me dit rien, sincèrement. Si je réussis d’ avoir plus d’ informations, je vous les donnerai, OK? Salut.
Gostei muito de ler o seu texto sobre a Quinta de Santo Amaro…tenho ascendentes que nasceram lá há muito tempo…o mais recente deles, Thomé Pereira em finais do século XVII. Apesar da linha principal que estou a estudar ser do Ferro, e este antepassado ter inclusivamente acabado lá os seus dias, nasceu na mencionada quinta. Obrigado pelo enquadramento histórico do que foi em meados do século XX.
Cumprimentos
Jorge Costa
Há mais para ler lá, companheiros – e só há uma forma de partilhar: partilhando.
Vão aqui para acompanharem tudo:
https://www.facebook.com/groups/592045000888002/permalink/703593339733167/
Não posso deixar de trazer aqui o diálogo que se tem travado em sede de página do Vale da Senhora da Póvoa em torno deste artigo:
Maria Do Carmo Azevedo —- não posso deixar de ,lembrar,com alguma emoção, quando íamos A PÉ, do Vale, para a Covilhã, paravamops lá, e deliciavamo-nos com o SORO, que nos davam… com muita boa vontade……..hoje, ninguém o valoriza….isto.passou-se..nos anos 50.
Josécarlos Mendes —- Soro!!!!!!!!!!!!!!! Ena, Maria Do Carmo Azevedo! Que bom que era, pá!!!
Maria Amélia Cameira —- Ó Zé Carlos, a Quinta de Santo Amaro sempre foi vendida a um brasileiro?? Constou-me…
Josécarlos Mendes —- Maria Amélia, a certeza do que se está a passar, não imagino. Parece que é um segredo bem guardado. Quem é que comprou? Se alguém sabe, se alguém ouviu o rumor, publique-o aqui, por favor. Se assim foi e se é para fazer reviver a agricultura de planíci…Ver mais
Maria Amélia Cameira —- Não sei pormenores…conversas de taxi…mas que havia maquinas a alisar a terra havia..para que fins não sei, mas tentarei saber!
Josécarlos Mendes —- Obrigado, Melita = Amélia (ponho o link para a Melita ser alertada pelo Facebook).