Há dois anos a colaborar no serviço pastoral de onze paróquias situadas na Raia do Sabugal, já pude observar várias vezes a Capeia Raiana, uma marca cultural destas onze aldeias e de algumas outras, uma expressão lúdica que envolve os homens da aldeia, os touros e o forcão, um instrumento de madeira rústica, construído anualmente, utilizado para lidar com o touro na praça da aldeia, à vista de um público que hoje ultrapassa largamente as populações residentes.
Parece ser, pelo que já ouvi dizer – e aqui não sou especialista e por isso não tenho nenhuma pretensão dogmática – que há séculos atrás, nestas aldeias fronteiriças, apareciam touros bravos desgarrados de manadas conduzidas de um reino ao outro com fins comerciais. Esses touros causavam grandes transtornos às populações pois eram muito fortes e selvagens. De modo que as populações destas aldeias desenvolveram o forcão, um instrumento próprio com o qual os homens – não os garotos – da aldeia enfrentavam e dominavam o touro que à vista deles e do forcão travava uma verdadeira batalha com forte enfrentamento. Passados esses tempos, a capeia raiana permanece como um jogo, um acontecimento típico das aldeias da raia do Sabugal, uma festa lúdica dessas populações e até mesmo um rito de passagem à maioridade masculina. É algo muito interessante de se ver. E desde que vi pela primeira vez, pus-me a pensar que desse evento lúdico se poderiam tirar lições de fé que nos ajudem a pensar a prática religiosa nessas paróquias da raia. E é este o meu propósito. Elenco então algumas lições que por certo não são todas e poderiam ser acrescentadas pelo estimado leitor.
1 – A existência do Mal.
Querendo ou não o touro aparece diante do forcão como um inimigo dos homens, que lutam para que ele não os atinja. Na capeia, o touro recorda a existência do mal, do diabo, do inimigo dos homens e de Deus. O papa Francisco tem recordado à Igreja e ao mundo esta realidade. O diabo não é uma lenda ou uma fábula. Ele existe e é inimigo da humanidade, pode e faz-lhe mal, quer tirar-lhe a vida, a vida eterna, e por isso precisa ser enfrentado com determinação.
2 – A comunidade que luta unida – a Igreja.
Para enfrentar o touro ao forcão ninguém vai sozinho. É preciso um grupo unido e uníssono, que sob o comando dos rabejadores, os responsáveis pelo manejo e direcção do forcão, tudo faz para que o boi não o contorne e atinja alguém. Os homens unidos ao forcão são imagem da Igreja, povo de Deus que deve enfrentar os desafios da vida, do sofrimento, do mal e da morte sem perder a esperança da vitória.
3 – Na estrutura, o fundamento.
O forcão é um engenho triangular, feito de pesados troncos de carvalho. Há uma trave central que liga a zona de comando à zona frontal do forcão, onde ela termina em forquilha (uma ou três). Outras doze forquilhas, seis de cada lado, das quais as duas maiores e mais fortes formam os dois lados do forcão, compõe a zona de enfrentamento com o touro. Todas as forquilhas se encaixam numa barra frontal que une. Aqui podemos ver os fundamentos da fé da Igreja. Na Igreja, Jesus Cristo morto e ressuscitado, é a trave central, «a pedra angular» (Sl 118,22; Mt 21,42; Mc 12,10; Lc 20,17; At 4,11; 1Pd 2,7), aquele que nos revelou a Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo, um único Deus em três pessoas); os doze apóstolos com sua fé nascida da convivência com Jesus fazem parte desse fundamento: nossa fé é apostólica! E é com essa fé ao mesmo tempo cristológica e apostólica que devemos enfrentar a vida e seus desafios. Um grande apoio nós encontramos em Maria, a mãe de Jesus e rainha dos apóstolos, por isso Mãe da Igreja. Ela é a barra frontal, que com leveza de mãe, nos une uns aos outros.
4 – A tarefa é de todos sob a orientação de alguns.
Apesar de importantes, os rabejadores não podem carregar sozinhos todo o peso do forcão (cerca de 300 kg!). É preciso que muitos homens juntos o façam com grande empenho, compromisso e força. Os rabejadores da Igreja são o Papa, os bispos, os padres e os diáconos, mas sem o povo nada pode ser feito. Uma tentação cada vez mais forte nas comunidades cristãs é deixar tudo ao senhor padre, ou aos mordomos, aqueles que pegam à ponta da galha. Não pode ser assim. Tal como no forcão todos devemos pegar juntos, unidos, comprometidos, cada um porém no seu posto.
5 – Diversos postos e um único objectivo.
No forcão, nem todos são rabejadores, aliás são só dois; nem todos pegam à ponta da galha, são só dois também, um de cada lado; e há aqueles que, dentro do forcão, ajudam a garantir a sustentação; todos porém têm um único objectivo e não se pode perder tempo invejando o lugar do outro ou criticando o modo de agir do outro. Isso seria dar uma grande oportunidade ao touro. Na Igreja é assim também. São Paulo diz que a Igreja é um único corpo, o corpo de Cristo, mas composto por muitos membros (cf. 1Cor 12). Há bispos, padres, diáconos, mas também catequistas, cantores, leitores, ministros da comunhão, encarregados da limpeza e das flores, mordomos do Senhor, das Almas e deste ou daquele santinho. Todos são importantes, todos são fundamentais. E cada um é importante à medida que desempenha bem o seu papel, a missão que lhe é encarregada. E cada um de nós abre uma brecha ao mal, ao nosso inimigo comum, quando critica o trabalho do outro ou alimenta sentimentos de competição interna.
6 – Desertar: o pior dos pecados.
A assistência não gosta quando alguém deixa o forcão, abandona o seu posto tomado pelo medo ou pelo risco iminente. O bom homem é aquele que luta com a sua comunidade até o fim. Também na Igreja, desde que fomos batizados, devemos lutar juntos, sem desertar. Hoje o risco do indiferentismo, do individualismo («eu cá tenho a minha fé») ronda a Igreja que somos todos nós, tentando enfraquecer o nosso forcão pela deserção das pessoas. E muitas vezes consegue.
7 – Assistir sim, mas sobretudo participar.
Todo raiano gosta de assistir à capeia. Mas, aqueles que hoje estão nos palcos, ou vivem com nostalgia os dias em que pegaram ao forcão e contam com ânimo suas histórias, ou vivem na expectativa de um dia pegarem ao forcão quando chegar a idade madura. O certo é que não basta assistir é preciso participar. Na Igreja é também assim: quem apenas assiste perde a melhor parte. Quem consegue sair do comodismo e participar de verdade da vida da Igreja nunca mais quer voltar para os palcos.
8 – O bezerro da rapaziada: a fé recebida e transmitida.
Entre os seis ou sete touros corridos na praça, numa tarde de capeia, há sempre um bezerro ou uma bezerra mais fraca, mais leve, para os meninos e meninas poderem ir ao forcão e experimentar a adrenalina do jogo, normalmente tendo por perto seus pais ou irmãos mais velhos que lhes transmitem o gosto pelo forcão e ao mesmo tempo lhe dão segurança. Na Igreja também é assim: a fé deve ser transmitida com emoção, com gosto, de pais para filhos, pois os pais são os primeiros responsáveis pela educação da fé dos seus filhos (compromisso assumido no casamento e no batizados das crianças) com o apoio sempre necessário dos catequistas.
9 – Salvar, um imperativo absoluto.
Uma das coisas mais impressionantes que já vi, foi quando, numa capeia, o touro conseguiu separar um dos homens do forcão e pôs-se então a escorná-lo só a ele. Qual foi a reação dos companheiros? E da multidão que assistia? Num piscar de olhos todos os homens da praça deixaram o forcão ou o seu posto nos salvavidas e, juntos, imobilizaram o touro, salvando a vida ao homem. Quantas pessoas nós temos visto na vida serem arrancadas das nossas comunidades e entregues ao desespero, ao abandono, à solidão, aos vícios e pecados, e nós permanecemos indiferentes como se não nos dissesse respeito? Esta é uma lição que temos que aprender. É preciso saltar dos palcos da vida e salvar quem quer que seja, mesmo que não conheçamos. É nosso irmão, é um de nós.
10 – E quando se quebra o forcão?
Quando as investidas do touro quebram uma galha do forcão, ninguém se põe a falar mal de quem o fez, de quem escolheu a madeira, etc, pois essa escolha e o fabrico do forcão foram comunitários, embora sempre haja um mestre que coordene os trabalhos, mas todos juntos põem-se imediatamente a compô-lo. Na Igreja também deve ser assim: quando percebemos algo errado, imperfeito ou mesmo mal feito não devemos andar a falar, a maldizer ou espalhar intrigas, devemos pôr mãos à obra e compor juntos, em comunidade, o que não está bem; afinal a Igreja somos nós e quando falamos mal dela estamos a dar com a enxada no pé. Desejo que todos os raianos e visitantes estejam a viver boas festas e animadas capeias! Que neste tempo tão típico das nossas aldeias aprendamos lições de fé, até mesmo dos nossos momentos aparentemente menos religiosos, e assim vivamos o dia a dia da nossa vida sempre iluminados pela luz da fé.
Padre Jean Poul Hansen (brasileiro)
Vigário paroquial das paróquias de Aldeia da Ponte, Aldeia da Ribeira, Aldeia do Bispo, Aldeia Velha, Alfaiates, Fóios, Forcalhos, Lageosa, Nave, Rebolosa e Vale de Espinho, na Diocese da Guarda, Portugal.
Numa altura em que a “Capeia Arraiana” foi elevada a Bem Cultural Imaterial do nosso Património, este artigo do Padre Jean Poul Hansen, brasileiro a exercer o seu magistério na raia do Sabugal, vem dar um grande contributo analítico a esta manifestação cultural do povo arraiano.
Muito já terá sido dito sobre esta temática, todavia, equacioná-la na base daquilo que melhor identifica a gente da raia, ou seja, a sua fé religiosa, constitui uma feliz ousadia que poucos de nós portugueses empreenderíamos. Tenho a minha fé que herdei dos meus antepassados e dela faço o farol da minha vida, mas comparar a mística da Igreja à mística da capeia raiana consubstanciada na dança do forcão com o touro, revela um grau de imaginação tal que só uma pessoa de elevada estirpe intelectual consegue transmitir e que eu jamais conseguiria. E se pensarmos que a pessoa em questão é um cidadão brasileiro que, só agora, se apercebeu da riqueza de sentimentos e emoções que este evento, nobremente, encerra, essa ousadia ganha maior e especial significado. O resultado conseguido é brilhante só possível com uma mente brilhante que, brilhantemente, o produziu.
Por tudo isto, certamente que os poderes autárquicos não deixarão de lhe tributar a justa e merecida homenagem!
Aproveitar o profano para defender o religioso ou, em Roma sê romano, bem podia ser a sintese deste texto do sr.Padre JPHansen.
Não é vulgar encontrar representantes da igreja católica com uma abertura de espírito como a que deste texto ressalta.
Não é vulgar alguém aproveitar uma tradição popular, enraizada nas populações para justificar comparativamente atitudes e comportamentos da própria igreja e da sociedade em que se encontra inserida.
Com padres como este, certamente todos têm a ganhar (a igreja e a sociedade).
Parabéns sr. Padre.
Jfernandes