É um facto! Por terras de D. Dinis, o toiro de lide é rei. Nas terras de Riba Coa realizam-se as famosas Capeias; no Ribatejo criam-se os bravos toiros; em Lisboa sempre houve festa brava, mesmo antes de construída a Praça do Campo Pequeno. Datam desse tempo as esperas dos toiros que vinham para as touradas no Campo de Santana, as quais tinham lugar junto à estalagem Nova Sintra, ao fundo da Calçada de Carriche. Também aqui são terras de D. Dinis.
A estalagem Nova Sintra foi famosa não pelo edifício nem pelo serviço mas sim pelos frequentadores e pelas esperas dos toiros.
Os seus melhores e mais assíduos clientes eram os «vates», poetas e artistas amantes da vida nocturna de Lisboa. Era àquele local que acorriam os aficcionados da festa brava, fazendo «espera» aos touros que se destinavam às corridas na capital.
Tomás de Melo, no opúsculo «A espera de Touros em Carriche», descreve o ambiente e narra a hilariante cena da espera:
«Que tardes as da Nova Sintra! (…)
Todos numa alegre promiscuidade! Equipagens de todas as espécies, desde a caleche brasonada até à traquitana do Sereno, alugada entre três ou quatro indivíduos, de barrete e cinta vermelha. (…)
Desde o meio dia que principiavam a afluir os trens para Nova Sintra.
Era um espectáculo atraente. Sob os caramanchões, tapados de hera e buganvílias, mesas cobertas de alvíssimas toalhas, esperavam os convivas. Trajes policromos destacando-se por entre a verdura, davam uma nota hilariante àquele recinto, e, entre a alegria rumorosa da conversação e o tilintar dos vidros, vinham, como sons de harpa eólia trazida pela viração, as notas plangentes e cismadoras das banzas, gemendo fados para os lados da mina, vibrados à sombra dos valados que se vestiam de madressilva e rosas silvestres. (…)
Depois, em carrinho descoberto, entre cobrejões, com os cavalos guizalhando, a Conceição Capelista a espalhar frases ternas, ao lado do seu Ramos. A segui-la noutro ainda mais rompante, a Amélia Bexigosa, corpo de Vénus pagã, a quem uma terrível paralisia ferira impiedosamente, mas que a despeito da enfermidade, tirada em braços para o trem, ia assistir à espera do gado como para ali recordar os seus passados triunfos. Mais longe, noutra caleche, a Henriqueta, a filha da Luísa do Frade, a pérola do Poço do Borratem, que alfim se regenerou pelo casamento, morrendo de tédio, poucos anos depois, com a nostalgia das lupercaes do José da Pinguinha, por noites largas e impiteiradas no Pinim e no João do Grão. (…)
E por toda a parte, num concerto de alegria e felicidade, bebia-se, comia-se e amava-se.»
Tomás de Melo conta-nos a parte divertida apenas, porque ele próprio fazia parte da «súcia» que se reunia naquele local para tomar parte na festa. Mas a passagem destes animais era uma questão séria e estava devidamente regulamentada, como se pode deduzir de uma Postura Municipal, transcrita para a acta da sessão de Câmara dos Olivais, no dia 25 de Fevereiro de 1858 e que diz o seguinte:
«O gado bravo que transita por este concelho, quer sejam touros ou vacas bravas, deverão sempre vir acompanhados de seis chocas e um boi de guia e um proporcional número de moços para acompanhar o dito gado, sob pena de pagarem 2.000 réis pela primeira vez e o dobro de multa pelas reincidências.»
Falando da celebrada Calçada de Carriche de folgazã memória para os estroinas de há 40 anos, Angelina Vidal, no livro de sua autoria, a que deu o título «Lisboa Antiga e Lisboa Moderna», dá-nos mais algumas informações acerca deste local, que poderão ajudar-nos a reconstituir as memórias do sítio:
«Fica na estrada que vai do Lumiar a Odivelas (…). Lá ao fundo é o Hotel da Nova Sintra. Toda a geração de ontem, actores, músicos, fidalgos de vida airada, escritores legendariamente estroinas, enfim toda a bela boémia que passou, por ali riu e se juntou em festins pantagruélicos.
Eram, no fim de tudo, corações abertos e leais, descuidosos do dia de amanhã mas capazes de rasgos de generosidade que não tem imitadores.
Além do que essa geração foi distinta de tudo. Teve os seus grandes poetas, os seus grandes músicos, os seus grandes actores, como se o talento lhes houvesse marcado ponto de reunião nesta famosa cidade. Que enormíssimas saudades devem restar aos sobreviventes quando recordam esses tempos. (…)
Nas pitorescas memórias das esperas dos toiros na Nova Sintra de há meio século, os Nisas, os Vidigueiras, os Vimiosos e outros gloriosos boémios enchiam aquela área de risadas e toques de violas.»
Isto escrevia a autora no princípio do século passado, quando já se faziam sentir as diferenças e as saudades dos passeios «às hortas» dos finais do século XIX.
O edifício veio abaixo quando se construiu o prolongamento da linha amarela do metro até Odivelas. Muitos se recordarão, como eu me recordo perfeitamente, do edifício que, na altura já não era hotel, mas ostentava ainda numa placa, a designação «Nova Sintra».
Hoje não há no local vestígios de um lugar de espera. Há apenas passagens rápidas, por vias rápidas. Todas as imagens se apagaram… ficaram as descrições dos boémios e dos nostálgicos e por eles sabemos que nem tudo valeu a pena.
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«Por Terras de D. Dinis», crónica de Maria Máxima Vaz
Amiga Professora Maria Máxima
Li com entusiasmo esta sua cronica sobre a espera de touros na Calçada de Carriche.É curioso ver como as lides de touros criam sempre à sua volta um ambiente ímpar de cor e movimento.Afinal, quando o ritual se cumpre tudo pode acontecer.
“Tudo vale a pena se a alma não é pequena.”
Um abraço para si e toda a felicidade do mundo.
Alberto Pachê
Caro amigo Adérito, só hoje lhe posso agradecer a apreciação simpática que fez a esta crónica.
Muito oportuna a lembrança que nos traz do belo poema de António Gedeão. Nem todos saberiam que a calçada de que ele fala é a Calçada de Carriche, valioso e honroso contributo para o nosso património imaterial.
Sabia que o meu amigo vive aqui e tive muito gosto em escrever esta crónica, também por isso.
Procurando, vão-se encontrando mais memórias … e sobre esta calçada, há mais estórias saloias.
Com amizade, um abraço,
Maria Máxima
Caríssima Maria Máxima Vaz
Parabéns por esta excelente evocação das esperas de toiros e da boémia lisboeta “fora de portas” (havia, de facto, “portas” de Lisboa, como as Portas de Benfica; e, ao fundo da Calçada de Carriche, do lado nascente, ainda vemos restos da “muralha” oitocentista subindo pela encosta, até à Ameixoeira). Moro na Calçada de Carriche mas já não passam aqui toiros, só os ciclistas da Volta a Portugal (sem ofensa!). E, fechando os olhos, ainda consigo vislumbrar a “Luísa sobe, /sobe a calçada, /sobe e não pode /que vai cansada”, de António Gedeão.
Abr. muito amigo do
Adérito Tavares