«Irmandades e Confrarias» foi o tema proposto pela Chancelaria da Confraria do Bucho Raiano para a Oração de Sapiência do V Capítulo e que foi, desde logo, aceite pelo professor Adérito Tavares, natural de Aldeia do Bispo, no concelho do Sabugal, onde teve lugar a cerimónia. A apresentação foi acompanhada por imagens projectadas que complementaram as palavras (brilhantes) com que o ilustre raiano brindou os participantes em mais um momento histórico da Confraria do Bucho Raiano.
Oração de Sapiência do Prof. Adérito Tavares, confrade de Honra com o título de Cavaleiro da Confraria do Bucho Raiano, no V Capítulo da Confraria do Bucho Raiano, em Aldeia do Bispo, no concelho do Sabugal.
Irmandades e Confrarias – Uma abordagem histórica
Não estamos hoje aqui para ouvir uma lição de História. Este é um dia de festa, de comemoração gastronómica e de reencontro de amigos.
Na raiz da palavra Confraria encontramos o termo latino frater, fratris, que significa irmão, e que está igualmente na origem de outras palavras da mesma família, como frade, fraternal, fraternidade e confraternizar. Uma confraria começou portanto por ser uma irmandade, leiga ou religiosa, que assumia o papel social de amparar os confrades desprotegidos, desamparados ou que, temporariamente se encontravam em situação de necessidade.
No tempo longínquo da Roma Antiga, eram muitos os deserdados da fortuna, sobretudo os escravos. Num Império construído pela conquista, os vencidos eram quase sempre escravizados. No século I da nossa era existiam cerca de 20 milhões de escravos, em todo o Mundo Romano (40 por cento da população). E, tirando alguns rapazes que eram mandados educar pelos seus amos para serem um dia pedagogos ou secretários, a maior parte dos servos eram analfabetos. A sua vida resumia-se ao trabalho: nas minas, nas galés, nos campos. Nas cidades, carregavam liteiras, alimentavam as fornalhas de aquecimento das casas ou das termas, desempenhavam os serviços domésticos. E morriam nas arenas, como gladiadores.
Mesmo a maioria dos plebeus, sendo homens livres, não tinham uma vida fácil. Não admira, portanto, que tenham aparecido na sociedade romana agremiações destinadas ao apoio mútuo, os collegia. Na sua origem etimológica, esta palavra significa «juntos por lei» – ou seja, um colégio era uma associação juridicamente instituída, com um estatuto próprio e objectivos bem definidos. Existiam collegia de carácter religioso, profissional e até gastronómico. Muitos desses colégios desempenharam na Roma Antiga importantes papéis no domínio cultural ou político, concedendo ou retirando o seu apoio aos candidatos às magistraturas.
Com a desagregação do Império e as invasões bárbaras, nasceram novos modelos de sociedade, novos hábitos, novos costumes, nova religião, nova mentalidade. Mas a vida dos desprotegidos continuou semelhante pelos séculos fora. Durante toda a Idade Média (e até ao século XVIII) entre 80 e 90 por cento da população eram camponeses, que viviam permanentemente no limiar da miséria, com uns escassos 30 anos de esperança de vida. Metade das crianças que nasciam nunca chegavam a adultos. Pesava permanentemente sobre a cabeça do camponês medieval a trilogia que originou uma oração que ainda hoje temos no ouvido: «Da fome, da peste e da guerra, livrai-nos Senhor…» E, perante uma vida tão difícil, um tempo em que «viver era sobreviver», era normal que os desamparados se unissem para se ampararem mutuamente, tal como acontecera na Roma Antiga.
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A partir do século XII, ocorre um grande crescimento urbano na Europa. Ressurgem as grandes metrópoles, com muitos camponeses a fugir dos campos e a fixar-se nessas cidades. E, como forma de protecção mútua, desenvolvem um acentuado espírito associativo, consubstanciado, originalmente, nas Confrarias. Estas eram associações de carácter religioso, em alguns casos também chamadas Ordens Terceiras, que tinham um determinado santo como patrono e que aglutinavam os habitantes de um bairro ou os membros da mesma profissão. Os elementos dessas Confrarias tratavam-se entre si por «irmãos» e deveriam ajudar-se em situações de dificuldade.
Assim, a confraria era uma família artificial alargada, dentro da qual os confrades encontravam protecção nos momentos difíceis da vida – na doença, na viuvez ou na orfandade. Quando um confrade falecia era frequente a confraria encarregar-se do funeral.
As confrarias organizavam também festas, participavam com a sua bandeira nas procissões da cidade, promoviam banquetes e outras formas de convívio. Na mensagem evangélica, a mesa sacralizou-se. Por isso, as irmandades e confrarias reuniam-se à mesa pelo menos uma vez por ano, quase sempre no dia do seu santo padroeiro, para partilharem o pão, o vinho e a carne na mesa confraternal, num ambiente de alegria. Nas confrarias do Espírito Santo, como ainda hoje sucede nos Açores, o bodo era mais abrangente, não sendo exclusivamente reservado aos confrades. A característica mais marcante destas confrarias de origem medieval era, portanto, a sua vertente vivencial, assistencial, solidária, sem esquecer, porém, a vertente convivial e gastronómica.
Tendo provavelmente origem nas confrarias religiosas, surgem, a partir dos finais do século XI, associações de carácter profissional, as Corporações de artes e ofícios. Reunindo todos os que, na mesma cidade, exerciam a mesma profissão, cada corporação tinha um regulamento escrito que estabelecia os horários e as condições de trabalho, os processos de fabrico, os preços e o número de trabalhadores.
Os membros das corporações estavam organizados segundo uma rigorosa hierarquia: aprendiz, companheiro, oficial e mestre. O grau de mestre apenas era alcançado depois de rigorosas provas prestadas perante um júri constituído por vários mestres do mesmo ofício, durante as quais o candidato executava a sua obra-prima. Depois de aprovado, o novo mestre podia então abrir oficina própria. Conforme facilmente se deduz, quando, no século XIII, surgiram as primeiras universidades, a carreira universitária decalcou esta estrutura corporativa que, com poucas alterações, ainda hoje se mantém.
De forma semelhante, à medida que se reanimam a actividades mercantis, os comerciantes associam-se de forma equivalente, nas guildas e hansas de mercadores.
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Todavia, apesar de estas formas de associativismo espontâneo terem contribuído substancialmente para melhorar as condições de vida, sobretudo nos meios urbanos, continuavam a existir pobres e desamparados por todo o lado. E foi essa situação que desencadeou dois outros admiráveis processos históricos: o nascimento do franciscanismo e a fundação das misericórdias.
Desde a Alta Idade Média que existia vida monástica, originalmente organizada na Ordem Beneditina e, a partir desta, nas Ordens de Cister e de Cluny. Mas todas elas se foram progressivamente colocando à sombra do poder político e do poder económico, tornando-se senhoras de extensos domínios e detentoras de muitos privilégios. E foi justamente isso que levou Francisco de Assis, nascido nos finais do século XII em berço burguês, a abandonar a riqueza da casa paterna e a tornar-se o Poverello – fraternal, verdadeiro irmão dos pobres, pedia aos outros para dar aos necessitados, fundando assim a primeira Ordem Mendicante, a dos Franciscanos.
O franciscanismo tinha um objectivo equivalente ao das confrarias – mendigar junto de quem tem para dar a quem nada tem. Andando de terra em terra, os franciscanos levavam à casa dos humildes o pão e a palavra evangélica.
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As Sete Obras de Misericórdia corporais derivam da fonte primordial que são os Evangelhos: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, acolher os peregrinos, visitar os enfermos, visitar os presos, sepultar os mortos. Mais uma vez, a etimologia pode ser-nos muito útil: a palavra misericórdia tem na sua origem duas outras – miséria e coração; o que significa que o misericordioso tem lugar no coração para os que sofrem, compadece-se com a miséria, com a dor, com a fome, com a doença dos outros. E foi este sentimento de compaixão que, tal como no caso das confrarias religiosas, levou à instituição das Misericórdias.
Qual a origem deste movimento? Se quiséssemos recuar muito, encontrá-la-íamos nas palavras de Cristo: «Bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia.» Mas como movimento organizado em irmandades e confrarias – as Santas Casas da Misericórdia – encontramo-lo a partir dos meados do século XIII.
Como sabemos, na Idade Média existiam vários santuários de peregrinação: para além da Terra Santa ou de Roma, também Santiago de Compostela ou Rocamador, por exemplo. E, ao longo dos caminhos de peregrinação, foram sendo criadas instituições de assistência aos peregrinos – albergarias, hospitais, leprosarias, etc.
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Em Portugal, nos meados do século XIV, no reinado de D. Afonso IV, a sua esposa, D. Beatriz de Castela, fundou a Irmandade das Merceeiras, cuja sede se situava perto da Sé de Lisboa. É preciso esclarecer que a palavra «merceeiras» nada tem que que ver com mercearias, mas sim com mercê – favor, benfeitoria, benefício, dádiva. D. Beatriz de Castela e as irmãs merceeiras foram as antecessoras da rainha D. Leonor, mulher de D. João II e irmã do rei D. Manuel I que, em 1498, fundou as Misericórdias portuguesas. Mais exactamente, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que, depois, haveria de ser replicada um pouco por todo o País.
Pouco antes da fundação da Misericórdia de Lisboa, a rainha D. Leonor tinha sofrido dois desgostos muito profundos: a morte do filho único, o príncipe D. Afonso, em 1491 e a morte do marido, D. João II, em 1495. A sua piedade acentuou-se desde então, entregando-se à fundação de hospitais, como o das Caldas, depois chamadas da Rainha, e refugiando-se no Convento da Madre de Deus, também por si fundado e onde viria a ser sepultada.
Para símbolo da sua obra fraternal, D. Leonor escolheu Nossa Senhora da Misericórdia ou Virgem do Manto, sob o qual se abrigam não apenas os necessitados mas também aqueles que impulsionaram esta causa tão meritória: a própria rainha e o seu irmão, o rei D. Manuel; Frei Miguel Contreiras, confessor e conselheiro de D. Leonor; o papa Alexandre VI, que aprovou a fundação das Misericórdias em Portugal; e D. Jorge da Costa, o Cardeal Alpedrinha, que apadrinhou todo o processo junto da Santa Sé.
Depois desta já longa incursão histórica, aportemos agora ao «middle of the road», o mesmo é dizer às confrarias gastronómicas.
«Ora et labora» era o lema dos beneditinos. Orar e laborar. Mas quem trabalha, seja com o corpo seja com o espírito, precisa de alimento. E os mosteiros foram verdadeiros laboratórios gastronómicos. Foi nos mosteiros, masculinos ou femininos, que se aperfeiçoaram muitas das receitas tradicionais, que se desenvolveram as técnicas relacionadas com a produção e a conservação do vinho e da cerveja, que surgiram os mais famosos doces conventuais. Dos mosteiros para a sociedade em geral, a herança gastronómica tornou-se um verdadeiro tesouro cultural – todos herdámos os maranhos, a chanfana, as tripas à moda do Porto, as papas de sarrabulho, etc, etc. Isto sem falar dos ovos moles de Aveiro, da fogaça de Vila da Feira, da morcela doce de Arouca, do toucinho do céu, da barrigas de freira, dos pastéis de Tentúgal, das fatias douradas de Resende, dos pastéis de Belém, da marmelada de Odivelas e de todas as variedades de pão-de-ló.
A preservação e difusão das tradições alimentares como elementos intrínsecos da cultura local, encontram-se portanto na raíz das primeiras confrarias gastronómicas, derivadas das confrarias de carácter religioso e socioprofissional. As ilhas açorianas, talvez pela distância e o isolamento, preservaram bem o espírito associativo medieval, consubstanciado nos impérios do Espírito Santo, com o seu bodo anual. Modernamente, porém, surgiram e cresceram por todo o País confrarias gastronómicas, como aquela que aqui nos trouxe – a Confraria do Bucho Raiano.
Todavia, ainda antes de nos sentarmos à mesa para degustar o bucho, façamos uma rápida incursão pela gastronomia tradicional de Ribacoa: lembremos o caldo escoado, a sopa de baginas e o caldudo; a chafraina, o coelho bravo com míscaros, as trutas do Côa e a salada de meruge; o arroz doce cremoso, as espumas ou nuvens, as mílharas e o calabaçote; as filhoses, as floretas, as bicas doces e as parronilhas; e, finalmente, tudo o que a matança do porco nos dá: chouriços e chouriças, morcelas, farinheiras e farinhatas; e, para culminar esta enumeração de fazer água na boca, o bucho.
Nas lembranças da minha infância, passada aqui, em Aldeia do Bispo, guardo com muita nitidez os tempos frios das matanças, com os marranos a guinchar, o sangue a cair num caçoilo, a palha a arder e a chamuscar os bácoros, depois esfregados com pedras até a pele ficar lisa e branca, a pesagem com a balança romana, o desmanche, com a canalha à porta para não deixar escapar «a passarinha». E, depois, a comesaina à roda do lume: o fígado frito com batas cozidas, a prova das farinhatas e das chouriças, as febras assadas, postas em cima de uma fatia de pão espanhol. E, no fim, uma boa talhada de queijo mole. Que bom era o tempo das matanças! Que bom era o tempo da nossa infância raiana!
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E o Bucho? Quando é que se comia? Só lá para diante, quase sempre no «domingo gordo», à beira da Quaresma, para nos despedirmos da carne, que só se podia voltar a comer quarenta dias depois. A minha avó Maria Ramos cozia-o sempre numa bolsa de linho bem apertada, para que não se desmanchasse e, depois de arrefecido, cortava-o em fatias com uma faca bem afiada.
Hoje não é domingo gordo, é amanhã, mas vamos todos banquetear-nos com bucho, batatas cozidas, grelos e o mais que vier.
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Os Capítulos da Confraria do Bucho Raiano incluem orações de sapiência sobre temas relacionados com as Confrarias e com a gastronomia e tradições raianas. Assim foi em:
– 2010 – com o escritor Célio Rolinho Pires – «O Bucho»… (Aqui.);
– 2011 – com o dr. João Luís Vaz – «Porco à mesa – ritual colectivo e prazer individual»… (Aqui.);
– 2012 – com o prof. Carvalho Rodrigues – «O Bucho – o milagre de uma tentação»… (Aqui.);
– 2013 – com o prof. Albino Lopes – «O bucho e as alegorias da governação: celebrar o trabalho gastronómico raiano para ganhar o futuro»… (Aqui.);
E, finalmente, no V Capítulo, em 2014, com o prof. Adérito Tavares: «Irmandades e Confrarias – Uma abordagem histórica».
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José Carlos Lages
Um excelente artigo do Prof. Adérito Tavares.Foi um privilégio ouvi-lo dissertar sobre o Tema Irmandades e Confrarias – Uma abordagem histórica.
Obrigado pelas suas palavras, Alberto, e também pelas fotografias feitas em Aldeia do Bispo.
Um abr.
Adérito Tavares