Daqui, do âmago deste meu olhar pensado, antes que o entardecer se estabeleça, encosto-me ao peitoril e cruzo o cristal da janela para contemplar céus e terra. Observo o galopar das nuvens a caminho das labaredas de um sol que se incendeia com o vir da primavera. Vejo a serra a contrapor-se num imenso verde renovado. Repete-se, este espectáculo, de tarde em tarde. Sempre eu o procuro porque ele sempre me comove. É como se o visse, cada vez, pela primeira vez.
Impõe-se-me, então, a vontade de sair.
Selecciono um sítio de entre aqueles que mais me dizem. Parto no seguimento de uma ansiedade diferente de todas as outras, aquecida em tons de Primavera, com sabor amargo e doce. Parto num partir de pressa instintiva.
A lonjura exige-me um carro que acabo por encostar para continuar a pé. Estaciono fora do alcatrão, à entrada de um caminho de terra amarela, orlado de arbustos. Em redor os chãos atapetam-se de ervas estacadas por carvalhos e castanheiros.
O caminho far-se-á vereda verde e esgotar-se-á num lugar vazio de gente, mas sobrelotado de tons e odores. Os sons são só os do vento a remover ramagens, a bafejar-me o rosto e a trazer-me o piar agitado de um pássaro assustado. Espero ainda que alguma ténue humidade me afague a cara.
Olho em frente e enquanto a tarde avança refresca-se me o corpo. O coração batoca em aceleração crescente e aquece-me a alma.
Caminho, agora, em passos solitários. Disfruto a verdura do campo, a sombra das árvores, a austeridade das rochas e aproveito para ir ao encontro de um passado gravado. E vou. Vou como se cantasse uma canção campestre enquanto o campo me reconhece.
Confirmo, sim, que apenas o tempo é diferente. O campo é o mesmo e o passado é repetido.
Habitei durante muito tempo este passado que ora reencontro e reconheço. Aqui sorri de felicidade. Aqui dei gargalhadas espontâneas quando o tempo não me importava.
Paro, tão só, porque me cansei de andar. Escolho uma rocha que sacudo de musgos para me sentar. Repouso e penso. Ninguém, nem a própria natureza, se incomoda com a minha presença à excepção de um melro que me vigia, desconfiado, a curta distância. Deixo-me ficar sentado enquanto, dali, olho novamente o tempo. Agora escuto-o e falo com ele por uns momentos. Depois silencio-me profundamente para olhar em busca de um passado mais longínquo.
Por uns instantes pensei que a pedra onde me sentava me queria falar. Parecia perguntar-me como me sentia. Respondi-lhe que me sentia bem, ali, no mesmo sítio onde tantas vezes me sentei noutro tempo, com outro rosto e com outros sentimentos. Mas agora estava algures entre o tempo passado e o tempo presente.
Inesperadamente o meu rosto molhou-se. Não sei, mesmo, se a humidade era do vento ou se alguma lágrima se me desenhava na cara.
Fiz que não queria saber. Quis acreditar que talvez isto fosse um lavar de alma. Quiçá fosse, só, um alívio momentâneo. Mas era, certamente, um regresso, uma busca de felicidade antiga, talvez perdida, ali, entre o tempo e o tempo.
Não sei sequer se, mais alguma vez, voltarei a este sentimento que me fez confundir uma lágrima desenhada com a humidade do vento. Mas sei que acabei por me esforçar para me afastar do passado, tentando reconquistar o presente. E sei também que, embora receoso, dali me aprontei para enfrentar o futuro.
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista no Capeia Arraiana desde Maio de 2011)
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Amigo Fernando capelo:
São estas reflexões que me deixam a pensar o sentido da vida.
José Gonçalves
Amigo Capelo :
Ao ler o que escreves, pergunto a mim mesmo se há mais energia na vida contemplativa, se na vida activa ( pergunta que no actual momento político é uma heresia !…) estas tuas pequenas grandes obras – refiro-me a artigos, por isso lhes chamo pequenas – só são conseguidas no recolhimento.
António Emidio