Existe uma espécie de mania nobiliárquica entre nós. Isso reflete-se na proliferação de títulos e noutras formas de diferenciação social e de designação de status.
Os estratos superiores fecham-se e os demais ganham mobilidade, que por não serem proporcionadores de um nivelamento, geram novas clivagens sociais. Enquanto noutros países o monsieur e a madame, ou o mister e a mrs, são o suficiente para o correto tratamento cordial, nós necessitamos de algo mais. Necessitamos dos excelentíssimos senhores ou senhoras, das donas e dons, das doutorices ou algo como assim.
A revolução de 1820 e a consolidação do liberalismo, após a Convenção de Évora-Monte, em 1834, marcaram o declínio da velha aristocracia e a emergência de novas elites de poder. Se os nobres perdem os títulos, os burgueses conquistam os seus. Novos condes acompanhados de condessas, viscondes de viscondessas, tudo títulos comprados com negócios, proporcionando uma vida sustentada pelo gordo Estado da Nação. Os títulos de barões escondem verdadeiros tubarões sociais que sorvem os demais.
Quiseram acabar, e bem, com os títulos imerecidos de nobreza, mas estes passaram a ser comprados. Ser nobre não é um título adquirido numa qualquer esquina da sociedade, mas é um direito requerido pela própria vida. Não se nasce nobre mas também não se compra o direito a sê-lo. E não se pense que só por se ter um canudo de doutoramento, ou outro assim, já se é um nobre. Pode ser um canudo de doutor, mas não é de um doutor nobre.
O status da causa pública é entendido como gerador de estabilidade para toda a vida, estando tantas vezes ausente a noção de serviço público. Poder usar qualquer título parece ser uma aspiração. Seja lá que título for. Tal como nos diz Corte, parece ser uma questão identitária, em que o ser social é identificado com a representação dada pelo próprio ou pelos outros. As hierarquias associadas à burocracia do Estado, à Igreja, às Forças Armadas, ao ensino, à cultura e à riqueza, são fermento de representações sociais.
Arrumaram-se as elites de poder durante os últimos dois séculos, mas os títulos, se não se mantiveram, apenas mudaram o nome. As classes mais privilegiadas procuram que os filhos possam legalmente exibir uma marca de status, enquanto as classes intermédias ou trabalhadoras vêm na atribuição de um grau académico uma espécie de ascensão social. Aliás, ocupar um cargo de status implica a designação de doutor, mesmo que o não seja. Como refere Marques, só se dá ao luxo da modéstia quem não tem a necessidade de se afirmar socialmente por essa via, ou quem tem uma mentalidade e personalidade libertas destes arcaísmos.
Os «drs.» da democracia equivalem aos barões, comendadores, bacharéis de outros tempos. São o rosto de uma sociedade profundamente dividida em classes, inigualitária em oportunidades de riqueza e escolaridade. Sabemos que quem usufrui, desde o início da escolaridade, de mais oportunidades e de melhores condições sociais e culturais, tem melhores condições de acesso ao ensino superior e melhores resultados. Estamos ainda muito longe de uma sociedade nobre e igualitária.
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«Desassossego», opinião de César Cruz
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