«Quando as nuvens correm para o mar (para oeste) pega nos bois e põe-te a lavrar» é um ditado popular que no fundo diz que se deve lavrar quando há nuvens mas não há chuva. É especialmente dirigido à primeira vez que se lavra a terra isto é à decrua. Desde a decrua, até termos grão, vão decorrer dois anos e a terra vai levar várias voltas.

1- A preparação da terra
As terras destinadas a produzir cereais, tinham e penso que ainda têm ciclos próprios que os lavradores por norma respeitavam até por que se o não fizessem o resultado da produção era inferior.
A preparação da terra é uma tarefa demasiado importante para que dela se não fale quando alguém pretende explicar como era obtido o pão nos anos 40 a 60 e até 70 do século passado.
A terra destinada a uma das culturas de sequeiro, que se semeava por volta de Setembro/Outubro, tinha que começar a ser preparada no ano anterior na mesma altura. Isto é, para se semear uma tapada, ela tinha que vir sendo lavrada durante um ano. Depois de semeado o centeio, era ceifado em Junho do ano seguinte.
A terra de uma tapada cujo centeio acabou de ser ceifado não deve ser lavrada no ano seguinte, para que a terra possa «descansar». Isto leva-nos à conclusão óbvia de que para garantir determinada área semeada anualmente era necessário ter 3 vezes a área dessa terra:
Uma parte para estar a descansar (em poisio);
Outra para estar a ser lavrada durante o ano (a arada);
Outra para estar semeada (a seara).
Na preparação da terras para o centeio o trabalho era quase exclusivamente feito por homens pois as tarefas eram bastante duras e a compleição física dos homens era mais adequada. Para as mulheres eram reservadas tarefas agrícolas mais leves e também a lida da casa.
Preparar a terra implica a execução de várias tarefas, ao longo do ano, por forma a que, semeado o cereal, haja maiores probabilidades de uma melhor colheita. O objectivo sempre foi e continua a ser o mesmo: Com a mesma matéria prima produzir o máximo que se puder de forma sustentada e com carácter de continuidade.
As razões que levavam à preparação das terras para as culturas e principalmente para os cereais mantêm-se actuais apesar de ter sido introduzida a mecanização quando a dimensão das terras o permite. Isto por que nas zonas da beira raiana a dimensão das parcelas de terreno é pequena e muito retalhada e pior que tudo por norma murada. É um hábito antigo que tem que ver com a noção de posse e propriedade que está enraizada na população e por isso é difícil e leva tempo a mudar. Terras de pequena dimensão, com muros na sua periferia, dificultam e ás vezes impedem que se possa usar um trator. A esta situação junta-se uma outra e que tem que ver com a orografia dos terrenos, muito declivosos em certas zonas.
No fundo, lavra-se a terra para a tornar mais mole. A terra fica mole quando tem ar no seu interior. Arejar a terra lavrando-a ao longo do ano várias vezes é torna-la produtiva pois para além de eventuais fertilizantes orgânicos poderem ser enterrados em qualquer das diferentes fases mas de preferência nas mais próximas da sementeira, no fundo o que estamos a fazer é a oxigenar o subsolo permitindo assim às futuras sementes germinarem e crescerem.
Um solo duro não tem grande quantidade de oxigénio. Lavra-se para o oxigenar e torná-lo fértil e mole. Uma terra mole, onde se enterram os pés quando passamos por cima dela, é uma terra que para lá dos nutrientes orgânicos ou não contém dentro de si muito ar. Não está calcada. É uma terra em que, qualquer chuva se infiltra facilmente.
Mas para a terra ter estas características é necessário realizar sobre ela um conjunto de operações que levarão àquele resultado. A forma e os meios utilizados para chegar aquele fim é que podem variar ao longo do tempo e conforme vamos tendo novas tecnologias.
1.1- A decrua
A preparação da terra para a sementeira das cearas é um processo que demora por norma um ano como se disse atrás, com a sobreposição casual de algumas tarefas duma fase com a outra. Isto é, está a semear-se uma tapada e, na mesma altura, noutra parcela de terra está a lavrar-se a primeira vez a terra para começar a prepará-la para no próximo ano poder ser semeada.
Quando se lavra a terra pela primeira vez num ano com a finalidade de ela ser semeada no próximo, o trabalho e esforço realizados são grandes principalmente se essa tarefa ocorrer, o que não é vulgar, antes das primeiras chuvas. Aí a terra está muito dura, pois não é mexida pelo menos há 2 anos. Isto é: nos solos pobres da beira interior, é necessário que as terras, depois de cada cultura de sequeiro por norma centeio, cevada ou mesmo trigo descansem pelo menos um ano. Trata-se de permitir que sejam adquiridos de novo pela terra os nutrientes necessários para que a futura cultura possa ter algum sucesso.
A essa tarefa de lavrar pela primeira vez a terra chamava-se a «decrua». A decrua era assim a transformação da terra que estava crua, dura, noutra coisa menos crua.
Quando a decrua ocorria depois das primeiras chuvas, a terra já se encontrava húmida e pois isso mais fácil de realizar a tarefa. Mas mesmo assim a terra tinha assentado fruto de um ano de descanso ou poisio. Se porventura ainda não tinha chovido a tarefa era mais dura quer para os animais quer para os homens que conduziam a tarefa.

Na decrua não se lavrava a terra de forma miúda, mas sim grossa. Isto quer dizer que não ficava totalmente revolvida. Lavrava-se grosso. Lavrar grosso consiste em abrir sulcos na terra separados o suficiente para formar umas mini-montanhas longitudinais a que se chamam gomas e deixar os regos abertos. A razão principal, tanto quanto sei tem a ver com o facto de, ao lavrar grosso deixando os regos abertos consegue-se decruar mais terra no mesmo tempo do que se estivesse a lavrar miúdo. Por outro lado, o tempo chuvoso que se segue ajuda a amolecer a terra decruada pois passa a ter as duas zonas laterais de cada goma expostas quer à chuva quer ao vento e ao frio.
Nos casos em que se decruava um terreno que dois anos antes tinha tido centeio, aproveitava-se para fazer a decrua desfazendo os regos ainda existentes mas meio estragados pelo tempo o que facilitava a tarefa pois a medida da largura dos regos estava definida à partida. Neste caso os regos da decrua eram feitos pelas gomas (ou o que restava delas) que se transformavam em regos e os regos pré-existentes ficavam transformados em gomas depois de duas gomas consecutivas terem sido lavradas.
A decrua era uma tarefa que era realizada no outono e inverno por razões que todos percebemos. Com as primeiras chuvas a terra estava mais “tenra” e por isso, apesar de dificil, mais fácil de lavrar.
O principal instrumento utilizado para lavrar, naquele tempo, era o arado de madeira sobre o qual se falará mais à frente quando forem abordados os diferentes instrumentos de trabalho, mas não resisti a colocar aqui uma imagem dele.

Por vezes a terra decruada cedo, por exemplo em Outubro, era de novo lavrada, no mesmo sentido da decrua, em Janeiro/Fevereiro se o tempo o permitisse. Com esta segunda volta, garantia-se que toda a terra havia já sido removida salvo pequenas porções que ficassem entre os dois regos consecutivos.
Na verdade, ao lavrar, no mesmo sentido aquilo que anteriormente tinha sido lavrado mas agora fazendo os regos onde antes tinham sido feitas as gomas e vice versa conduzia a que tudo fosse removido pelo menos uma vez.
As tarefas do mundo rural, quase todas têm razões próprias para serem feitas
desta ou daquela maneira, neste ou naquele tempo, razões que têm sempre a ver com o tempo,meios disponíveis, a produtividade e com o esforço despendido. Mas… não isso que hoje ainda acontece em qualquer tarefa?
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Nota: O próximo texto (3) desta série irá abordar a fase seguinte da preparação da terra a que se chamava estravessa. A estravessa era executada na primavera quando as chuvas já rareiam. Por isso, será publicado nessa altura: fins de Fevereiro princípio de Março.
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«Do Côa ao Noémi», opinião de José Fernandes (Pailobo)
caro JLGouveia:
obrigado pelas suas palavras.
Obrigado pela recomendação. Não será esquecida!
Um abraço
Jfernandes
JFernandes
Sem dúvida que estamos perante um “manual de instruções”, de bem saber, deste árduo trabalho agrícola.
É um prazer acompanhar este ciclo da natureza que, tratado com este carinho, só pode ter boa produção.
E já agora, JFernandes, depois da sementeira feita, não esqueça o ditado: “Se vires verdejar põe-te a chorar; Se vires terrear põe-te a cantar”.
Boa produção!
JGouveia
caros FLourenço e FCapelo:
Obrigado pelo apreço
jfernandes
Ótimo texto que regista, recorda e ensina. Parabéns
Com o devido respeito faço minhas as palavras de José Carlos Mendes “belo tema, óptima descrição, excelente escrita.”
Caros PLBatista e JCMendes:
Obrigado a ambos pelo apreço manifestado.
JFernandes
JF, um abraço de apreço.
Digo apenas: belo tema, óptima descrição, excelente escrita.
Caro José Fernandes,
Este seu texto é um autêntico manual de como tratar a terra para garantir boa sementeira e melhor colheita. Não era por acaso que os nosso antepassados, que viviam de fossar a terra, se cansavam em constantes e penosos trabalhos. Tudo tem uma explicação – a sabedoria popular resultante da experiência vivida e acumulada levou ao uso de técnicas de trabalho que garantiam o sustento de uma vasta população.
Parabéns pelos belíssimos textos com que nos tem brindado.
paulo leitão batista