Nesta época natalícia, período do ano em que mais atenção prestamos à mesa, procurando que a gastronomia tradicional esteja presente nas principais refeições, pareceu-me oportuno sabermos alguma coisa do que se comia no tempo do Rei D. Dinis.
Os hábitos alimentares variaram ao longo dos séculos, e durante a Idade Média também. Por isso vou situar-me no tempo do nosso rei D. Dinis e falar apenas dos hábitos alimentares dessa época que eram muito diferentes dos nossos. As refeições eram duas, mas não à hora das nossas:
– O Jantar era pelas 10/11 horas da manhã;
– A Ceia à noite, sem hora exacta, pois o Sol é que determinava o dia, o trabalho e o lazer e também as refeições.
Admite-se que poderia haver uma refeição ligeira pela manhã, antes do jantar, mas não se encontraram ainda referências. As fontes que temos são as indicações, em relatos ou pragmáticas, daquilo que se comia ou devia comer e apenas a estas duas refeições: jantar e ceia.
O Rei tomava as refeições em privado, na sua câmara. Todos os alimentos do Rei eram provados perante o mordomo, na cozinha.
Este funcionário régio não podia perder os alimentos de vista até chegarem à mesa do rei e, na sua presença, o próprio mordomo provava a comida. Uma tábua ou placa de prata, rectangular – «o talhador» – tinha a função que hoje têm os pratos e era individual, assim como a faca.
Já havia colher, mas o garfo era desconhecido.
Outra peça individual era a «napeira», que me parece ser a antepassada dos guardanapos, mas de maior dimensão, a qual estava presa à toalha junto de cada comensal, para limpar as mãos. A faca não podia limpar-se à napeira, mas a uma fatia de pão.
O mordomo servia o rei, colocando a comida no talhador. A refeição começava com fruta e vinho. O assado era o prato principal. Era de carnes tenras.
Mas havia muitas outras formas de preparar a carne sem ser o assado.
Predominavam o carneiro, as carnes de animais de montaria, com destaque para o javali e também as aves de caça, com destaque para o faisão.Com o assado vinham os molhos. O molho verde era o mais usado e o sabor mais apreciado era o agridoce. Fazia-se largo uso das ervas aromáticas.
As especiarias já se usavam mas eram muito caras e só iam à mesa do rei ou dos nobres. O mesmo acontecia com o açúcar. Nos registos de compras de produtos alimentares, aparecem números referentes a arrobas de açúcar para a casa real mas não eram para confeccionar sobremesas. Os frutos, frescos ou secos é que se comiam em quantidade.
Usavam gorduras animais: manteiga e toucinho. O azeite também era usado mas sobretudo nos pratos de peixe, tais como o salmão, lampreia, pescada, esturjão, solha e trutas.
Comiam-se muitos legumes cozidos, colocados numa vasilha comum e tirados à mão para cima do talhador, procedendo de igual forma com as carnes e com os peixes. A comida era cortada sobre o talhador, antes de levada à boca, com as mãos.
Compreende-se que era necessário ir lavando as mãos, pelo que os servidores vinham com um «gomil cheio de água e uma bacia», várias vezes, junto dos comensais. Depois de lavadas, limpavam as mãos à sua «napeira».
Havia várias qualidades de sopas, (caldos) mas não havia sobremesas doces na Idade Média. O açúcar era usado no tempero, como especiaria.
Em abono do que afirmo, vou transcrever uma das muitas receitas em que o açúcar está presente:
«Tomareis uma galinha e assá-la-eis e depois de bem assada cortá-la-eis em pedaços; e então tomareis ovos, gemas e claras, tudo muito bem batido. E um pedaço desta galinha de cada vez, muito bem envolto nestes ovos. Tereis uma sertã com manteiga ao fogo e frigi-la-eis nesta manteiga toda; e tomareis fatias de pão e far-lhe-eis outro tanto embrulhadas nos ovos e fritas. E tereis açúcar claro e passareis a galinha e as sopas por ele e poreis tudo numa vasilha com as sopas por baixo e canela pisada e açúcar por cima.»
Nesta receita o açúcar é só colocado no fim, mas há muitas receitas em que se coloca o açúcar com os outros temperos. Aqui deixo um exemplo:
«Tomarão a carne do carneiro ou do porco fresco e picá-la-ão e lavá-la-ão e deitam-na em uma panela e não há-de ter osso nenhum e deitar-lhe-ão uma pouca de água e deitar-lhe-ão no cozimento um pedaço de açúcar e um pedaço de manteiga e a água seja pouca. Depois de cozida deitar-lhe-ão um pequeno cravo e depois tirá-la-ão deste caldo tendo acolá uma dúzia de ovos com claras e gemas batidas, doces, e então tomareis esses ovos e tereis acolá uma sertã com uma pouca de manteiga sobre o borralho e depois da manteiga quente deitareis metade daqueles ovos e então por-lhe-eis a carne; depois em cima daquela ainda mal frita até vos parecer, virai-la e meteis a rapadoira para fazer buracos para irem os ovos que ainda não usastes e agora lhe deitais, tendo cuidado que nunca se pegue à sertã. Colocam-se depois sobre fatias passadas por açúcar e deita-se-lhe por cima canela e açúcar branco. Borrifam-se com água de flor.»
Esta maneira de dizer pode parecer-nos estranha. Mesmo assim, fiz uma adaptação para ser entendida, embora não alterando o sentido e procurando manter o mais possível a antiga forma de expressão.
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«Por Terras de D. Dinis», crónica de Maria Máxima Vaz
Não venho aqui com regularidade e só hoje vi o seu pedido.
Eu fiz um curso sobre o tempo de D. Dinis, na Universidade Nova. Quem leccionou esta questão das refeições foi a DOutora Iria Gonçalves, que nos deu apontamentos e informação oral. Também há livros do Professor A. H. Oliveira Marques que tratam alguns aspectos. Já passou muito tempo e não tenho de memória.
Muito interessante mesmo, posso lhe perguntar quais foram as fontes onde recolheu estas receitas? estou a fazer um trabalho de recolha histórica e nunca tinha lido estas receitas.
Adorei assim como adoro todos os vosso “posts”, continuem e bem hajam!
Gostei de ler.
Muito interessante.