:: :: ALFAIATES (6) – CONVENTO DA SACAPARTE :: :: O livro «Terras de Riba-Côa – Memórias sobre o Concelho do Sabugal», escrito há mais se um século por Joaquim Manuel Correia, é a grande monografia do concelho. A obra fala-nos da história, do património, dos usos e dos costumes das nossas terras, pelo que decidimos reproduzir a caracterização de cada uma das aldeias nos finais do século XIX, altura em que o autor escreveu as «Memórias».

A distância de dois quilómetros pouco mais ou menos de Alfaiates e a pouco mais de Aldeia da Ponte existem as ruínas do convento da Sacaparte, cujo templo é um dos melhores de todo o concelho do Sabugal, não só pelas dimensões e aparência exterior, mas também e principalmente pela ornamentação interior, pelos altares e belíssimas esculturas.
O convento foi fundado em 1726 e pertencia à ordem dos agonisantes, fundada por Clemente XI em 1709.
A primitiva igreja, no dizer do Pe Vasconcelos, na sua obra «Descripção de Portugal», foi fundada pelos godos, conservando-se o templo durante o domínio mourisco e celebrando-se nele os ofícios divinos, mediante um certo tributo. Já em 1332 foi taxada em oito libras.
Diz-se também que perto deste convento travaram sério combate D. Alvaro de Lara, fidalgo poderoso no tempo de D. Sancho, o Bravo, no qual tomaram parte D. Afonso, filho de Afonso III, Fernão Soares e Gentil Soares, dois fidalgos portugueses, que ficaram mortos no campo.
Vê-se na «Monarchia Lusitana» a propósito de Sacaparte:
«A Egreja de N. S. da Sacaparte, situada meia legua d’ Alfaiates & em seu limite entre esta villa e Aldeia da Ponte: sua origem dizem ser que tendo batalha um Rey deste reyno com o de Castella, no lugar sobredicto, vendo-se ao por do sol em aperto, começou a dizer: Virgem sacai-nos a boa parte; e logo assi succedeu, ficando com toda a sua gente para a parte da sua terra. Em gratificação ordenou que se mandasse edificar esta casa e lhe deu a invocação de N. s.a da Sacaparte, como agora lhe chamam».
Nessa mesma obra diz-se não haver notícia de que ali houvesse combate entre Castela e Portugal e, «que o caso succedeu nesta lide de D. Alvaro Nunes de Lara» a que atrás nos referimos.
Como se trata de lenda nenhuns comentários deveríamos fazer; mas, se é verdade o que o p.e Vasconcelos afirma a respeito da ermida, o caso nem se teria dado entre dois reis, mas com D. Alvaro Nunes de Lara, visto que nesse tempo a ermida já existia, salvo se com as palavras «mandasse edificar esta casa» se quizesse significar uma reedificação, o que contraria o texto citado. E como a verdade não está nas duas partes, porque uma versão destrói a outra, se o caso se passou entre dois reis ou com D. Alvaro, justo é concluir que a ermida não datava do tempo dos godos.
Referindo-se à Sapacarte vê-se na citada obra: «No alto do retábulo estão as armas reais. He egreja mui capaz; dentro tem um poço muito fermoso, cuja agua faz milagres nos enfermos, particularmente de maleitas: o sítio é agradável em um valle muito grande & aprazivel, com uma fonte e tanque. Nos sabbados da quaresma concorre ali muita gente».
…«De cada lugar do dicto termo (Castello Mendo) vinha hum homem nú da cintura para cima e descalço com uma tocha fermosa e o da vila com ventagem; por todos são vinte que costumam pesar cento e trinta arrateis, huns annos pelos outros. Esta devoção dizem ter princípio de haver naquelas terras hum monstro que destruia campos e gente, fizeram promessa á Senhora de vir nesta forma a sua casa, cada anno, com o que se viam livres e pregoam que faltando hum anno se viram outra vez perseguidos delle».
A poesia popular para não ficar indiferente à lenda terrorista ligada à procissão dos nus perpetuou-a na seguinte quadra:
Senhora da Sacaparte
Vinde à porta pequenina,
Vereis dezoito em couro
Da cintura para cima.
Até o fermoso poço a que se refere a obra citada mereceu as atenções da musa popular, como se vê das seguintes quadras:
Senhora da Sacaparte
Olhai o que diz a gente
Que na vossa santa casa
Está um poço corrente.
Senhora da Sacaparte
Olhai o que diz o mundo.
Que na vossa santa casa
Está um poço sem fundo.
Existe efectivamente um poço no interior do vasto templo da Sacaparte, mas está coberto com grossas lages e as águas vão encanadas para o exterior, onde são aproveitadas pelo público que passa, principalmente nos dias de festa, servindo para mitigar a sêde aos inúmeros romeiros.
O costume de irem à Sacaparte pessoas dos termos de Vilar Maior, Alfaiates, Sabugal e Castelo Mendo «com sina levantada e muita gente de cavalo luzida», indo alguns nús da cintura para cima, acabou perto do meado do século XIX, porque o bispo de Pinhel D. Bernardo Beltrão Freire acabou com tão ridículo costume.
Ainda hoje se afirma que num ano em que deixou de se observar o costume antiquíssimo desaparecera um ferreiro de Porto de Ovelha, mas bispo ilustrado foi superior aos prejuizos e superstições do povo e nem por isso desapareceram ferreiros ou outros quaisquer homens.
O pretendido monstro podia bem ter sido igual a esses que pejam as cadeias e penitenciárias, monstros de figura humana, mas de ferinos instintos, preversos que, aproveitando as superstições e ingenuidades do povo, puzessem em prática os seus ruins instintos, para se vingarem dalgum inimigo, acobertados pela crendice popular.
Natural era, porém, que certos dos desaparecidos fossem vítimas dalguma fera, lobo ou urso. Lobos existem ainda em abundância em quase todos os concelhos do distrito da Guarda e algumas vítimas têm causado; e ursos muitos houve na península e em Portugal, deixando o nome ligado a vários sítios do concelho do Sabugal, como no Souto e Pena Lobo. Tanto os ursos como os lobos deviam esconder-se nas serras, como ainda hoje sucede com os lobos e porcos bravos, que fazem sortidas nos campos, os primeiros freqüentemente e os últimos já raras vezes, porque se escondem nas serras do Meimão, de Penamacôr e outras e de Espanha.
Diz-se que D. Deniz depois de ter conquistado o território de Riba-Côa ia caçar muitos vezes perto da Sacaparte, melhorando então a capela, sendo ele e sucessores padroeiros da mesma.
Tudo leva, porém, a crer que o templo fosse depois melhorado e indiscutivelmente o foi mais ainda quando se procedeu à edificação do convento em 1726. Deste não restam mais que ruinas.
:: :: :: :: ::
Nele viveram alguns religiosos de grandes virtudes. Nenhum, porém, igualou a fama de Frei Guedes, no vastíssimo saber, génio e perspicácia notáveis, mas sobretudo pelos seus hábitos gastronómicos, robustez descomunal, constituição e gordura excepcionais.
Contam-se dele muitas anedotas e ditos de verdadeiro espírito, mas tudo suplantava a sua voracidade, a ponto de comer em dias de festa, onde ia pregar, depois dum abundantíssimo jantar, um leitão assado.
Não havia cavalgadura que pudesse suportar-lhe o peso e por isso, quando não viajava a pé, ia em carro de bois, sendo hoje do domínio de toda a gente «que fazia cantar o carro» com seu extraordinário peso, pois este «chiava».
Ouvimos a uma senhora de família que o convidou para uma função religiosa, que, mal se apeou do carro, que lhe tinha enviado, lhe oferecera almoço, que ele recusou, por jejuar, aceitando, porém, uma parva, nome dado neste concelho a uma singela refeição, fatia de pão centeio simples, nos dias em que se jejua, isto antes do jantar, que é ao meio dia.
Ordenou essa senhora à criada que trouxesse sardinhas e pão, que lhe apeteciam, comendo Frei Guedes um pão de quilo e 25 sardinhas.
:: :: :: :: ::
Depois de referirmos a lenda da Sacaparte, o que julgámos nosso dever, porque as lendas foram sempre o encanto do povo e às vezes encerram alguma verdade e ele as escuta com ençanto e quase devoção nos serões e à lareira, devemos ainda dizer que os altares do templo da Sacaparte foram há poucos anos feitos de novo e nele se realisaram outras obras importantes.
Neste templo celebram-se anualmente quatro festas, havendo nesses dias também feiras, sendo a melhor a que tem lugar em Agosto. Realisam-se. as feiras no vasto terreiro que fica em frente e ao lado do templo, do qual se domina um vastíssimo horizonte.
Estas festas são feitas à custa da Irmandade da Senhora do Carmo, legalmente erecta, cujos estatutos foram aprovados em 16 de Maio de 1885.
É muito rica esta Irmandade, não só por serem muitos os anuais que pagam os numerosos associados, mas porque o capital produz bons rendimentos, que são aplicados em funções religiosas, sufrágios pelos irmãos defuntos, melhoramentos e conservação do templo, como melhor se pode ver nos estatutos, que constam de 88 artigos, aprovados pelo falecido Bispo da Guarda D. Tomás de Almeida e pelo governador civil José Aires Brandão de Meio.
«Artigo 1.° – Os fins desta Irmandade são:
§ 1.° – Socorrer, tanto quanto o permitirem os respectivos fundos e rendimentos, os irmãos indigentes nela instalados, ministrando-lhes esmolas para remédios e alimentos, quando enfermos ou impossibilitados de grangearem meios de subsistência.
«2.º – Promover a instrução e moralidade pública e especialmente a dos irmãos e seus filhos, já criando e subsidiando escolas de ensino e profissionais, quando as suas condições financeiras o permitirem, já doutrinando-os, instigando-os à prática dos preceitos religiosos, pela forma declarada neste compromisso.
«3.° – Sufragar as almas de todos os irmãos falecidos, segundo os ritos da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, e nos termos também deste compromisso».
:: :: :: :: ::
Nos últimos tempos temos notado grande tendência em alterar o nome de Sacaparte para Sacraparte e este figura já nos estatutos. O povo, a tradição escrita e oral, talvez respeitando a origem lendária, chamam-lhe Sacaparte; alguns, poucos, indivíduos preferem chamar-lhe Sacraparte, lugar sagrado. Não pode discutir-se o nome desde que ele figura em documentos importantes e por isso entendemos que deve respeitar-se o antigo, sem preocupações de qualquer ordem, porque não é por mero capricho que se altera o nome dum local, duma ermida e dum convento.
«Virgem, sacai-nos a boa parte» – gritavam, imploravam os combatentes, diz a lenda, quando ali próximo houvera um prélio.
Não podemos, pois, alterar o nome, sem alterar a lenda, o que não é lícito fazer-se.
Aniversários – Romarias, festas e feiras na Sacaparte
Na Sacaparte há todos os anos quatro festas, que têm lugar no dia 25 de Março, no dia incerto da s.a da póvoa, a mais importante, em Maio, em 15 de Agosto e 8 de Setembro. Há também nesses dias feiras, sendo notável a de Agosto, como atrás referimos, sempre muito concorrida por gente de longes terras de Portugal e Espanha, porque ali há sempre variedade e abundância de produtos agrícolas e artefactos de várias espécies, vendidos por comerciantes e tendeiros que armam suas barracas ou aproveitam os telheiros pertencentes à Irmandade.
Nesse dia não faltam ourives, porque os lavradores costumam ali vender seus géneros e comprar ouro para as filhas.
Entre os produtos agrícolas apenas faremos menção das grandes e saborosas melancias que aparecem à venda, a mor parte criadas nos concelhos de Belmonte, Sabugal e Covilhã.
Não faremos destas festas e romarias descrições detalhadas, porque isso tornava muito extensa esta notícia.
Devemos contudo dizer que nas vésperas se estoiram sempre muitos foguetes e se admira brilhante fogo preso, que provocam verdadeiro entusiasmo. Desde que no templo da Sacaparte se venera a imagem da Senhora da Póvoa, cuja festa tem sido muito luzida, aumentou consideravelmente o número de romeiros.
Os aniversários são todos os anos muito concorridos pelos famílias deles, quando falecidos.
:: ::
«Terras de Riba-Côa – Memórias sobre o Concelho do Sabugal», monografia escrita por Joaquim Manuel Correia
Leave a Reply