O livro «Subsídios para o estudo da vida e obra de Nuno de Montemor» mandado editar pela Câmara Municipal da Guarda no centenário do nascimento do escritor-padre de Quadrazais (16 de Dezembro de 1981) é composto pelos dois ensaios que obtiveram os primeiros prémios. Associando-se à feliz iniciativa da Junta de Freguesia de Quadrazais vamos divulgar no Capeia Arraiana um dos ensaios premiados pela autarquia guardense da autoria da historiadora sabugalense Maria Máxima Vaz. O estudo inclui cartas inéditas de Nuno de Montemor. (Parte 3 de 4.)
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«NUNO DE MONTEMOR – UM ESCRITOR GUARDENSE, SUA VIDA E OBRA»
(Reprodução do trabalho – Parte 3 – Continuação)
Entrevista a Monsenhor Moreira das Neves em 17 de Novembro de 1980…
– M. M. – Monsenhor venho pedir-lhe para me falar de Nuno de Montemor.
– M. Moreira das Neves – Nuno de Montemor era um amigo encantador, de longe. Ao pé tornava-se absorvente, pela amizade que me tinha. Desde que chegava até que partia, eu tinha que deixar tudo para só o atender a ele. Era bom mas exaltado, de infantil candura. Quando se sentia ferido era uma fera, mas bastava uma desculpa para logo se acalmar.
– M. M. – Como se conheceram e se tornaram amigos?
– M. Moreira das Neves – Quando saiu o seu livro «A Paixão de uma Religiosa» eu escrevi-lhe uma carta, ele respondeu-me e a correspondência nunca mais parou. Um dia falei-lhe da minha obra, o patronato que fundei em Mosteiró, onde recebia as crianças depois das horas da escola. As meninas, em grupos de três ou quatro, faziam um enxoval de 10 peças para os bebés que se baptizassem dentro do prazo de um mês após o nascimento. Pois Nuno de Montemor fez-me uma surpresa – enviou-me um enxoval de 42 peças. Como era melhor que os outros, teve que ser sorteado.
– M. M. – O Monsenhor conviveu muito com Nuno de Montemor?
– M. Moreira das Neves – Enquanto viveu na Guarda, encontrámo-nos pouco. Sempre que publicava um livro vinha a Lisboa tratar da edição e passava cá uns dias. Nessas alturas era tirânico, queria que só o atendesse a ele. Era vibrátil e tinha as suas manias. Um dia foi almoçar comigo. Para se subir para minha casa, havia uma escada exterior, destas de ferro, em caracol. Pois não subiu. Preferiu voltar para trás e ir almoçar a outro lado, apesar da satisfação que tinha em estar comigo. Uma das suas maiores qualidades era ser muito humano. Contou-me que uma ocasião foi a casa dele uma mulher, pedir-lhe leite para o filho e ele disse-lhe. «Vamos ao lactário! – Ó senhor Padre, eu não posso ir consigo, sou prostituta. – Qual prostituta qual carapuça! E mesmo por sê-lo que quero que vá comigo, para que a respeitem quando for sozinha.»
– M. M. – O Monsenhor nunca o visitou?
– M. Moreira das Neves – Cá em Lisboa visitei-o várias vezes, mas quando ainda vivia na Guarda apenas uma vez em que lá fui fazer uma conferência sobre «Imprensa Periódica». Quando soube que eu ia, ficou contentíssimo e disseram-me que andou oito dias a preparar a casa para me receber. Foi até esperar-me ao comboio e acompanhou-me ao Seminário, onde não aparecia há 30 ou 40 anos, talvez desde que de lá saiu! Não gostava de lá ir, mas foi à minha conferência. Eu prestei-lhe homenagem como grande romancista católico português e colaborador da Imprensa. Ficou babadinho! A sua alegria ainda foi maior quando o senhor D. Domingos me disse: «Tive muito prazer que falasse em Nuno de Montemor e chamasse à atenção para o seu valor. Isso é motivo de orgulho para a Diocese.» Parece-me que o facto de o Bispo fazer esta afirmação o deixou satisfeito, apesar de ele não ir lá muito com bispos e outros dignitários, porque não era pessoa que se curvasse muito perante ninguém. Houve uma ocasião – era bispo ainda D. José Alves Matoso – em que os bispos portugueses, por instigação do bispo do Porto, proibiram os padres de irem ao cinema ou teatro sem uma autorização sua. Nuno de Montemor resolveu ir ao Bispo D. José: «É a primeira vez que subo estas escadas. Venho lavrar o meu protesto contra a decisão tomada e dizer que continuo a ir sempre que entenda que posso e devo ir… – Você é terrível, Nuno de Montemor! – Pois sou, mas sou assim mesmo. Tenho passado a vida nos hospitais e nunca lá vi um bispo. Era melhor que se ocupassem mais do bem estar dos seus párocos.»
– M. M. – Em relação aos livros que publicava nunca lhe pediu opinião?
– M. Moreira das Neves – Antes de cada edição, reunia os amigos e lia-lhes o original, mas não aceitava reparos. Um dia eu tinha muito trabalho no jornal e não pude assistir. Aconteceu que para esse livro não tinha ainda título e pediu aos presentes que, por escrito, lhe sugerissem um. Eu perguntei a um dos ouvintes qual era o assunto do livro, ele fez-me o resumo e eu arranjei também um título que foi rifado com os outros. O que saiu foi precisamente o meu «E o Sangue se Fez Luz».
– M. M. – Qual a sua opinião sobre a obra literária de Nuno de Montemor?
– M. Moreira das Neves – Eu dizia-lhe muitas vezes que lamentava que ele fosse romancista, porque ele foi sempre acima de tudo um poeta lírico. Do livro que eu gosto mais é de «Amor de Deus e da Terra», prefaciado por Afonso Lopes Vieira, de quem foi muito amigo. Tem graça que não gostava de Paul Claudel que fazia, com ele, versos sem métrica. Chamava-lhe diplomata.
– M. M. – Conheceu-lhe amizades no meio literário?
– M. Moreira das Neves – Sim, era grande amigo de António Sardinha, Hipólito Raposo, Pequito Rebelo e outros. Isto não só por causa dos escritos mas também pela política, pois pertenciam todos ao Integralismo Lusitano, embora de início, Nuno de Montemor tenha sido republicano. Descrente, porém, da República e dos partidos, abandonou esse ideal e passou a fazer parte do grupo dos integralistas. Eu assisti à morte de Afonso Lopes Vieira e vi que ele tinha na sua biblioteca um pelicano dourado, que lhe tinha oferecido Nuno de Montemor.
– M. M. – O pelicano era o símbolo dos integralistas, não era?
– M. Moreira das Neves – – Sim, era uma espécie de ex-libris. Nuno de Montemor tinha muito prazer em dar. A mim ofereceu-me uma medidazinha de estanho, por onde beberam os franceses das invasões e que ele comprou a uma velhota, por dez tostões. Doutra vez mandou-me da Guarda uma caixa que funcionava como aquecedor. Ele tinha observado que eu passava muito frio neste escritório e ficou com pena de mim. Andou então a magicar como havia de solucionar o problema e descobriu. Mandou fazer uma caixa de madeira onde se metia um depósito de latão, isolado por meio de lã de ovelha. Esse recipiente enchia-se de água quente que se conservava todo o dia. Eu punha aquilo debaixo dos pés, e desta forma nunca me arrefeciam. Poderia contar muitos mais casos, mas creio que estes são suficientes para fazer uma ideia da personalidade de Nuno de Montemor. Antes de sair, quero ainda oferecer-lhe algumas cartas das muitas que ele me escreveu. Escrevia cartas muito grandes, era muito expansivo. Pode levar estas e publicá-las. Eu fico ainda com muitas.
– M. M. – Obrigada Monsenhor.
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Cartas inéditas de Nuno de Montemor para Monsenhor Moreira das Neves
Lisboa, 23 de Outubro de 1957
Meu bom Amigo
Vejo, pela sua generosa carta, que Luz de Fátima o contentou. Isto me basta, para não me arrepender de o haver escrito. Será apenas retribuir os seus belos versos, com um bocadinho de alma, que o Céu me deu – nada mais.
Porque se vê Nossa Senhora através das lágrimas, choradas por Ela, é que o livro parece belo…
Não o escrevi para gabar nem tão pouco para dar um passo para a sua representação. É certo que, no actual momento da vida portuguesa, quando a Luz de Fátima inflama o mundo inteiro, bom e necessário seria que aparecesse um drama que fosse a viva expressão do sentimento nacional, mas essa honra estará destinada para outro que não seja eu.
Infelizmente, o catolicismo português – já o dizia o grande Sena Freitas – à força de o ser, deixa de ser cristão. E uma devoção de protocolo. Nossa Senhora não pode estar contente. O fogo das nossas almas é que devia erguer-se e alastrar, pelo mundo, até onde vai a luz da Virgem dos tristes e dos poetas.
Andamos a morrer num mundo de cera e rendas…
Não se escandalize, porque é assim.
Quando li, a primeira vez, na União Gráfica, o Avô, apareceu-me de súbito, pela minha frente, Monsenhor Forni, para que o deixasse ouvir. Estava presente toda a redacção.
E deixou-se ficar, sozinho, comigo, para passearmos, uns momentos, na Avenida da Liberdade: «Não perca a coragem, continue – dizia-me ele – persista, porque a Igreja quer e precisa. Há-de sofrer, seis que já sofreu, mas lá fora sucede outro tanto.»
Eu que detesto mandar livros autografados aos Príncipes da Igreja, para os não sujeitar ao medroso cartão de agradecimento, aqui temos um Bispo, um Monsenhor, a quem não me importava de mandar a Luz de Fátima. Ah! meu Amigo, porque não hão-de os bispos e os fiéis confessar-no, sem medo nem respeito ao mundo?
Dias virão, e talvez breve, em que se arrependam.
Pois eu julgo que, sem vaidade, valem mais as plicas que nós pomos nos ii quando escrevemos, que os beijos devotos que certos ricos e beatas dão nas pedras dos anéis prelatícios.
Abençoada a Virgem que me defendeu de, um dia, vir a ser um escritor endiabrado…
Outro assunto. Então o meu Amigo julgou-me de mal com o Muller?!
Valha-nos Deus! Vê-se bem que me não conhece bem. O que eu sou é uma chaga viva!
Com 14 anos de hospitais, vítima de uma doença horrível da qual diz o Elísio de Moura «se sofre mais que se me abrirem os meus cinco sentidos».
Creio que o Muller já sofreu uma amostra desta doença, e foi para, de certo modo lha minorar que, lhe escrevi cartas enormes. Ele bem sabe: quando assim se sofre, não há tempo senão para a dor.
Não estou nem podia estar a mal com ele. Se eu não morrer cedo, havemos de encontrar-nos, não para jantar, porque eu tenho uma alimentação de ermita.
E já que não fui a sua casa, por o Moreira das Neves estar ausente, entregar-lhe, pessoalmente a Luz de Fátima, quero lá ir, mas não para comer. É só para o abraçar e para… ver se ainda lá tem o pichel por onde beberam os franceses… E adeus! Não lhe quero tomar mais tempo.
Creia-me sempre amigo et nunc et semper.
Nuno de Montemor
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Lx. 28-X-957
Av. Visconde de Valbom, 37, 1.° Esq.°
Querido Amigo
Uma das minhas grandes preocupações, ao escrever a Luz de Fátima, não foi o receio de dificuldades literárias, porque as não tive, mas o temor de o envolverem a si nalgum insulto semelhante ao que uma vara de suínos fez ao meu livro A Virgem. E tanto que lhe pedi licença para lhe oferecer o drama.
Felizmente, não aconteceu assim.
Graças a Deus já estamos longe daquele telegráfico e medroso cartão, com que certos bispos costumavam agradecer algum livro que se lhes mandasse. Felizmente, não aconteceu assim, agora.
O Núncio, que nem sequer de rosto conheço, antes de partir para a África, apressou-se a escrever-me, agradecer, a felicitar e a abençoar-me. Deus queira que se não arrependa.
Provavelmente esta homenagem é obra sua…
Desta vez, fiz apenas duas ofertas do livro, autografadas: ao Núncio e ao meu bom Bispo. Ambos me escreveram, atenciosamente.
Outra nota: do João de Barros, que me diz chamarem-lhe um «pagão irredutível»: «Li o livro com minha mulher, ambos ao mesmo tempo, e comoveu-nos, impressionou-nos muito. É um êxito! Nem uma palavra a mais nem a menos, no livro.»
Por vir de um pagão, é que isto especialmente me interessa.
Enfim, pelo que me dizem, numa nuvem de cartas, a Luz de Fátima vai singrando como Nossa Senhora quereria…
É claro que isto é só para nós dois. Olhe que eté os analfabetos se apaixonam, ao ouvirem ler.
Ainda bem, porque custa muito ver-se a gente mal entendido e inocentemente enxovalhado.
Quando havia de lembrar-me que até um jesuíta me havia de chamar dissoluto na Brotéria!… Eu que fui único a defender os jesuítas, num livro, quando era perigoso e raro outros fazerem-no.
O que eu tenho passado, meu Amigo!
Já não vivo anos, para fazer muito mal.
E este preito à Virgem, em que tanta gente parece acompanhar-me, é um lenitivo. Graças a Deus!
Abraça-o o pobre e dolorido
Nuno de Montemor
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Guarda, 22 de Março de 1949
Meu bom e querido Amigo
Segue hoje, pelo caminho de ferro, ao domicílio, um caixote com os tubérculos das dálias, e tenho pena que o meu querido Amigo não respondesse logo à minha carta, porque lhe poderia mandar das minhas tulipas, vindas directamente da Holanda. Agora já é tarde.
Agora tome sentido: as dálias podem ser plantadas a 60 centímetros umas das outras, e os bolbos nao ficam fundos. O colo nao fica a mais de mão travessa de fundura. Querem muito sol, muito adubo (nao a tocar o tubérculo), mas um pouco a roda, e muita água, depois de crescidas.
Também as pode plantar em vasos (um tubérculo em cada vaso) que nao devem ser pintados, e ficam-lhe bem junto a grade da escada, uma em cada degrau, mas é preferivel que sejam em terra livre. Depois, um dia que eu por ai va, irei ver o espago que ainda lhe fica para outras plantas para lhas mandar na ocasiao própria. Enquanto nao nascerem não as regue, a não ser que o tempo continuasse muito seco. Adubo, sol e água, e terá plantas até Novembro.
Abraça-o afectuosamente
Nuno de Montemor
p.s. As dálias, devido ao horror do frio e do gelo (hoje temos 3 graus dentro de casa) hão-de parecer-lhe mirradas.
Dizia minha mãe que quando se dá, dá-se o melhor, sempre, ou então não se dá. Segui o preceito.
A terra as fará inchar. Se ela estiver muito seca, pode regar a terra depois de as plantar.
Vão todas as qualidades separadas em papéis. As que ai me ficaram ainda são mais mirradas.
Tem ido um inverno seco e gelado, nada propício as plantas.
Quero ver se os floricultores ainda têm bolbos. Para o ano lembre-se mais cedo das túlipas. Em Janeiro.
N. M.
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Nuno de Montemor e duas cartas de António Sardinha
Em 1910, era António Sardinha estudante em Coimbra e morava na Rua de Tomar. Dali escreveu a seguinte carta ao Padre Álvares de Almeida, que só mais tarde adoptaria o pseudónimo de Nuno de Montemor.
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Meu querido Amigo
Isto parece inacreditável, mas pode crer que só domingo é que soube que o seu artigo sobre o meu livro aparecera em Agosto nas «Novidades». Não consegui obter já esse número; se não fosse a colecção da biblioteca da Universidade ainda a estas horas não teria gozado a alegria imensa que as suas palavras levantaram em mim. Não é a vaidade lisonjeada, é a satisfação do artista que se debate na eterna dúvida de si mesmo por se ver compreendido tam superiormente! O carinho com que o meu Amigo trata o meu Tronco enterneceu-me, poz-me n’alma a humida transparência que a neurasthenia e a interrogação incessante que a toda hora eu faço sobre mim a mim mesmo há tanto haviam posto em debandada. Bem haja, bem haja o meu Amigo por essa alegria salutar e digna que espalhou no meu espírito, acordando nele o desejo alto das grandes coisas! Sam uma responsabilidade para mim as suas palavras, mas é com fé, e com confiança que procurarei pelo trabalho corresponder-lhes.
Se tiver aí um n.° das Novidades, mande-m’o. Quero ter perto de mim o seu artigo para o ler muitas vezes, para delle tirar o animo quando a fraqueza me assaltar.
Sei-o jornalista. Com muito prazer figurarei na lista dos assinantes d’A Actualidade.
Um grande, um comovido abraço do seu dedicado e gratíssimo amigo:
Coimbra, R. de Thomar, 10-XI-910.
António Sardinha
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O artigo a que António Sardinha se refere veio na secção literária das Novidades de 10 de Agosto e ocupava mais de duas colunas. Ali dizia o Padre Álvares de Almeida:
«António de Monforte (então pseudónimo de António Sardinha) não é um desconhecido do nosso meio poético. Embora moço, viu-se já abraçado por altas individualidades literárias, portuguesas e espanholas, num dia em que a Infanta D. Paz de Bourbon o coroava de flores e os aplausos de grandes intelectuais o sagrava poeta de mérito.
Dando-nos agora o seu livro Tronco Reverdecido, engrandece os seus créditos literários e firma o seu nome de artista na esfera mental da literatura portuguesa.
O que é preciso desde já dizer, em honra de António de Monforte, é que ele fugiu à rotina de tantos versejadores medíocres, escrevendo um livro português para portugueses.
Pena é que tão bela obra não possa ser compreendida e amada pela maioria dos leitores, tão habituados estes estão ao contrabando intelectual, e tão firme é a convicção de que as coisas portuguesas apenas servem para se dizer mal delas». A Nuno de Montemor continuava numa crítica acerada à mania dos estrangeirismos que infestavam então, como ainda hoje infestam, as nossas letras.
Vinha, depois, a análise do Tronco Reverdecido e o seu elogio como exaltação da paisagem e do sentimento lusíadas: «Tronco reverdecido é todo ele um canto harmonioso à vida simples e forte de Portugal.»
E concluia o artigo: «Como não creio que nos versos do Tronco Reverdecido haja apenas literatura, receio bem que António de Monforte, tão desejoso de reunir no seu futuro lar as puras delícias das terras lusitanas, não possa encontrar, no dia de hoje, para esposa, moça portuguesa que não mande de vir de França a água para o cabelo e a terra para as begónias…»
Nisto se enganou, e ainda bem, Nuno de Montemor. António Sardinha veio, efectivamente, a casar com uma senhora cem por cento portuguesa. Só assim lhe mereceria as estrofes tão profundamente líricas e cristãs da Chuva da Tarde.
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Outra carta de António Sardinha para Nuno de Montemor
Elvas, A. C. – Quinta do Bispo 27-VI-922
Meu querido Amigo
Tive a alegria das suas notícias e creia que elas constituem, no meu isolamento, um dos mais belos prémios de espírito. Quem, como eu, seja um afectivo, não lhe basta cumprir o seu dever, à romana – estoicamente. Isso não é humano e muito menos cristão. Sofro por tanto na minha sensibilidade a dor de ter razão. Não é insurgir-me contra o espírito – não é negar a verdade. Pelo contrário, é testemunhá-la no reconhecimento de que, por outro lado, o caminho seria mais fácil e sorridente. Compreende, pois, o meu querido Nuno de Montemor que o seu aplauso, do leito da sua dor, me encheria o coração de conforto, dando-me novos estímulos e novos convencimentos.
Se o Integralismo foi para você a maior paixão da sua vida, para mim foi o único sentimento que poude na minnh’alma, ocupar o lugar vazio do meu querido filho.
Já você compreende que a nada o sacrificaria.
Quero dizer aqui, por honra à verdade, que a informação que recebeu em Coimbra não tinha fundamento algum, nem pelo que tocava ao Alberto nem ao Luís Braga.
O meu querido amigo nem imagina a força de intriga de que o liberalismo dispõe. Ficou-lhe essa herança das suas origens maçónicas.
Que rumo o nosso? Eu creio que devemos aproveitar a liberdade com que Deus nos visitou. Assim, é possível que ponhamos de parte a organização, para nos mantermos apenas na defesa da doutrina e no ataque aos constitucionalistas.
Oh, meu amigo, com eu prefiro mil vezes a república a vesgasta brava, que nos levou a nós à posse da nossa verdade, a essa forma de anarquia mansa, invertebrada e gelatinosa, que se diz «ordem» e se intitula conservantismo! Ora a organização aproveitando dedicações, deu-nos também o funesto resultado de improvisar acomodatícios que, na sua insignificância, se valorizaram depois pela deserção.
Isso faz-me pensar muito e gostava de saber a sua opinião. Acontece ainda que, neste equívoco, não achamos matéria-prima. O povo falta-nos porque nos confunde com os outros.
Não seria melhor, verificando a ausênsia e a falta do rei, entrarmos no campo imediato da acção social, organizando a nação à margem da política, contra republicanos e contra constitucionalistas, por meio duma forte propaganda do nosso sindicalismo, tão radical e tão enérgico, ao mesmo tempo que tão cheio de flagrante actualidade?»
A Nação Portuguesa sai qualquer dia. Outro aspecto, a salvação da inteligência nacional.
Nosso Senhor o melhore, meu querido Amigo, para ocupar nas suas colunas o lugar que em justiça lhe pertence. Sei que lá para Outubro aparece o seu romance. Ainda bem!
Que largo campo esse para o nosso doutrinarismo!
Eu, por mim, trabalho sempre e d’alma elevada.
Breve o visitarão mais livros meus. E agora que a sua fé de sacerdote o penetre dum sentido elevado do seu sofrimento.
Lembre-se das palavras de Cristo a Pascal: «Eu estarei em agonia até ao fim do mundo.» Ora se a cruz do Senhor se prolonga em nós, que a sua angústia minore a angústia do Homem-Deus.
Adeus. Abraça-o muito, o seu do coração.
António Sardinha
p.s. Mande-me, de quando em quando, as suas notícias num breve postal.
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Os originais das duas cartas de Sardinha acima transcritas, ofereceu-no-los Nuno de Montemor em Maio de 1945, com estas penhorantes palavras:
«Só a si eu dava essas duas cartas do Sardinha: uma do tempo de estudante, outra escrita pouco antes de morrer.
São cartas dos tempos em que se queria e sabia ser amigo, em que a amizade era um culto honrado e consolador.
Na segunda carta batem, inteirinhos, o coração e o talento do Sardinha: a morte do filho, o seu ideal político, a sua visão de uma nova actividade mental, enfim muitas coisas belas que eu, um dia, lhe explicarei».
Nuno de Montemor viveu sempre na admiração e na estima de Sardinha. Sendo, os dois, grandes amigos, foram também dois lealíssimos companheiros de luta, batendo-se um e outro no mesmo campo aberto, sem sucumbirem às desilusões cotidianas nem ao assalto das sombras agressivas.
Na Nação Portuguesa, em 1922, mencionava António Sardinha os aplausos do seu «querido companheiro de combate, ainda a braços com o calvário do seu longo sofrimento.
As suas palavras são para nós um conforto compensador de tanto embate doloroso e injusto. Naquele ano, colaborou Nuno de Montemor na Nação Portuguesa, com um artigo em que se abre e crepita toda a sua alma brava e clara de beirão.
Dando hoje a lume as duas cartas de Sardinha, é sobretudo como documentos humanos que desejamos as interpretem os leitores. Tanto na primeira como na segunda, está o espelho da inteligência e da sensibilidade do autor de Ao princípio era o Verbo e, no que ele escreveu, vemos a conta em que tinha Nuno de Montemor.
António Sardinha morreu no dia 10 de Janeiro de 1925. Se ainda fosse vivo, ninguém mais do que ele gostaria de apertar hoje Nuno de Montemor no mais longo e enternecedor abraço, como se o Tronco Reverdecido de 1910, coberto de frutos, conversasse, na pureza do cerne, o aroma e a força das primeiras Seivas.
Padre Moreira das Neves
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Carta de agradecimento de Adolfo Simões Muller
Devo-lhe, meu querido Nuno de Montemor, numerosíssimas provas de amizade. Se as quisesse recordar a todas, teria quase que contar as estrelas – e talvez houvesse necessidade, para me aproximar da conta verdadeira, de lhes juntar os satélites que os homens andam a colocar no céu quando seria preferível encherem a Terra de luz… mas adiante!
Entre as muitas gentilezas de que lhe sou devedor, permito-me lembrar duas: uma direita ao coração, outra que devia ter chegado ao estômago…
Eu conto.
Há coisa de dez anos, quando o Nuno de Montemor escreveu «Glória e Desengano do Herói», reuniu à sua volta um grupo de amigos muito ilustres e mais outro que não o era – ilustre, bem entendido: eu. E tive então a grata surpresa de ver que a reunião me era consagrada, pois o Nuno de Montemor tivera a muita generosidade de me dedicar aquele livro, em homenagem, bem imerecida, à recente publicação das minhas «Aventuras do Trinca-Fortes», modesta biografia de Camões para a Juventude. E fê-lo dirigindo-me palavras de elogio que me fizeram corar até às raiz dos cabelos – ainda então quase todos loiros… Fiquei embatucado, confesso. E não soube encontrar, nessa altura, as palavras para lhe agradecer tão alta gentileza. Creio mesmo que hoje, se o quisesse fazer, também não seria capaz. É bem certo que, se as grandes dores são mudas, as grandes alegrias também nos emudecem por vezes.
E já lá diz um provérbio árabe, a valer-me na emergência, que é da árvore do silêncio que pende o melhor fruto, neste caso o do mais profundo reconhecimento. Mas nunca mais esqueci aquela tarde doirada em que a sua bondosa camaradagem se dignou honrar-me tão galhardamente.
Na outra ocasião, mandou-me o Nuno de Montemor, da sua querida e fria Guarda, uma belíssimas morcelas para o meu jantar. Quem as recebeu, porém, foi o Moreira das Neves. E, como a carta que as devia acompanhar, chegou atrasada, que pensou o Poeta? Que elas se lhe destinavam. E vá de as ir comer na companhia do António Correia de Oliveira e do seu irmão João.
Quando o Moreira das Neves soube do equívoco, logo tudo me contou. E eu, de combinação com ele, apressei-me a telegrafar para a Guarda, a agradecer as saboríssimas morcelas que não tinha comido…
Como aqueles pobres que tragam pão seco pensando em mel ou em manteiga, eu engoli naquela noite o meu caldo a imaginar o maravilhoso enchido que, a essas horas, já havia feito as delícias de outros estômagos. Consolou-me a ideia de que, ao menos, as «minhas» morcelas tinham encontrado o mais justo e glorioso destino.
Tudo isto e muito mais lhe devo. Mas a minha maior dívida de gratidão para consigo deriva, afinal, da leitura das suas obras. Saborosas como as morcelas da Guarda, comovedoras como a sua dedicatória da «Glória e desengano de Herói», grandes como o seu coração de amigo, elas têm sido, em muitos dos meus dias, admiráveis companheiros. Como agradecer-lhe, senão pedindo-lhe que mande mais?
Lisboa, Janeiro de 1960.
Adolfo Simões Muller
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«Para a minha alma Nuno de Montemor é dos mais puros poetas de Portugal. O Poeta, para exprimir o seu amor de Deus e da Terra, achou na palpitação do próprio sangue a forma que lhe havia de convir – ao mesmo tempo forte e fluida, de religiosa cadência bíblica, e impregnada dos reflexos, aromas e sabores espirituais da Pátria.»
São estas palavras de Afonso Lopes Vieira, que as escreveu em 1925 como testemunho da sua «admiração e simpatia pelo místico breviário de um português, serrano piedoso de alma brava e meiga. O «místico breviário» é o livro de salmos «Amor de Deus e da Terra».
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(Parte 3 de 4 – Continua.)
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José Carlos Lages
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