O livro «Subsídios para o estudo da vida e obra de Nuno de Montemor» mandado editar pela Câmara Municipal da Guarda no centenário do nascimento do escritor-padre de Quadrazais (16 de Dezembro de 1981) é composto pelos dois ensaios que obtiveram os primeiros prémios. Associando-se à feliz iniciativa da Junta de Freguesia de Quadrazais vamos divulgar no Capeia Arraiana um dos ensaios premiados pela autarquia guardense da autoria da historiadora sabugalense Maria Máxima Vaz. O estudo inclui cartas inéditas de Nuno de Montemor. (Parte 2 de 4.)

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«NUNO DE MONTEMOR – UM ESCRITOR GUARDENSE, SUA VIDA E OBRA»
(Reprodução do trabalho – Parte 2 – Continuação)
1 – O HOMEM
Joaquim Augusto Álvares de Almeida, nasceu na freguesia de Quadrazais, concelho do Sabugal, no dia 16 de Dezembro de 1881.
Nesta povoação arraiana fez a sua instrução primária e viveu a infância e uma parte da adolescência, até entrar para o Seminário Diocesano, onde logo revelou apreciáveis dotes de espírito.
Foi ordenado sacerdote ao completar vinte e três anos de idade, no dia 17 de Dezembro de 1904, tendo a seguir desempenhado o cargo de pároco da Vila de Almeida. Passado pouco tempo preferiu encarregar-se da missão de capelão militar e foi promovido a capitão no dia 11 de Março de 1922. Nesta situação se manteve até 31 de Dezembro de 1937, altura em que passou à reserva. Daí em diante desempenhou o cargo de secretário do Distrito de Recrutamento e Reserva, na Guarda. até à data da reforma, que se verificou em 16 de Dezembro de 1951, precisamente no dia em que completou setenta anos. Uma vez aposentado, fixou residência em Lisboa, onde veio a falecer no dia 4 de Janeiro de 1964, pelas 13 horas, com oitenta e três anos de idade.
O seu corpo foi velado na Igreja de Nossa Senhora de Fátima e no dia 5 do referido mês, pelas 13 horas, saiu o féretro para a sua tão querida cidade da Guarda. Ali lhe celebraram solenes exéquias na Igreja da Misericórdia, no dia seguinte, 6 de Janeiro, pelas dez horas. O seu corpo ficou sepultado no cemitério desta cidade, onde vivera a maior parte da sua vida e escrevera grande número das suas obras.
Nuno de Montemor era muito doente e segundo ele afirma numa carta ao seu amigo Monsenhor Moreira das Neves, passou catorze anos em hospitais. Ciclicamente, a doença manifestava-se, mas nos últimos treze anos que viveu em Lisboa, quase não o largou, amargurando-lhe a velhice. Era nos intervalos, entre o abandono e o regresso da dor, que ele escrevia os seus livros.
A sua obra porém, porventura a mais amada e à qual dedicou o melhor de si mesmo, não foram os seus escritos mas sim o lactário Dr. Proença, que fundou para as crianças da Guarda. Ali passava a maior parte do tempo, vendo as irmãs distribuir o leite, pesar os bebés e afagando-os com um carinho quase paternal. Amava as crianças e as flores. Por isso o lactário tinha um belo jardim, onde as cultivava com dedicação. Numa carta ao amigo que já várias vezes referi e que junto em apêndice, revela possuir conhecimentos de floricultura e grande interesse pelas plantas.
A sua condição de sacerdote não aniquilou a sua natureza humana e poderemos considerá-lo um homem de acção, que cultivou, a par da evangelização, a caridade, ou talvez usas-se esta, para atingir aquela. Ele sabia que as necessidades físicas são inimigas da virtude e procurou sempre, na medida das suas possibilidades, eliminar a miséria dos lares onde a encontrava. A sua religião era a autêntica, a que brota espontânea no coração e não a que se impõe. A sua doutrina era evangélica, o seu modelo Cristo-Amor, mas também justiça. Desde que alguém necessitasse de ajuda, não lha recusava, fosse religioso ou ateu, senhora de grande prestígio social ou prostituta. Não tinha nem respeitava preconceitos. Uma ocasião, foi a casa dele uma mãe a pedir leite para o filho.
– Vamos ao Lactário — disse o escritor.
A mulher ficou atrapalhada, hesitante, receosa de o acompanhar e manifestou-lho com humildade e vergonha.
– Eu não posso ir com o senhor Padre.
– Ora essa! Porquê?
– Sou prostituta e pode parecer mal, pode comprometer-se.
– Qual prostituta qual carapuça! Você vem comigo. E é mesmo por ser prostituta que quero que venha comigo, para que quando vá sozinha saibam respeitá-la.
Era a dimensão humana do Padre. Era o Padre, que vivia a sua religião e fizera dos princípios a sua norma de vida.
A semelhança de Cristo – que se aproximou da samaritana, que aceitou as lágrimas de Madalena, que disse à mulher adúltera:
– «Ninguém te condenou? Nem eu te condeno. Vai em paz», – também ele não queria condenar nem sequer julgar, mas apenas ajudar uma mãe que precisava e lhe pedia auxílio.
Para as crianças havia sempre uma reserva na sua bolsa e apoiava todas as iniciativas que as pudessem beneficiar, desde que chegassem ao seu conhecimento.
Monsenhor Moreira das Neves, quando Pároco em Mosteiró, concelho de Vila do Conde, fundou ali um patronato, onde recebia as crianças nas horas livres. As meninas ocupavam algumas dessas horas a confeccionar peças de roupa para os bebés da freguesia e cada recém-nascido reecbia um enxoval de 10 peças. Nuno de Montemor, conhecedor da obra, quis também contribuir com a sua parte e enviou um enxoval de quarenta e duas peças, que por ser mais rico que os outros, foi fixado à sorte, deixando cheia de alegria a mãe do feliz contemplado.
Era uma natureza exuberante, expansiva e leal. Tinha um temperamento vibrátil e nem sempre o dominava, mas a sua exaltação durava o momento do relâmpago, logo quebrava e se mostrava bondoso e pacífico. Se alguém o ofendia, manifestava imediatamente a sua indignação, mas bastava uma palavra, uma desculpa ou justificação do agressor, para logo perdoar a ofensa.
Íntegro e bom, era um espírito muito independente, submetendo-se apenas aos princípios da sua religião e aos ditames da sua consciência.
Um dia chegou ao seu conhecimento que o Prelado da sua Diocese, de comum acordo com todos os prelados do País, proibira os sacerdotes de irem ao teatro ou ao cinema, sem uma autorização sua.
Imediatamente se dirigiu ao Paço, ele que raramente dali se abeirava e pediu para falar ao senhor Bispo, na altura D. José Alves Matoso, que prontamente o recebeu.
– Venho participar a V. Ex.ª Rev.ª que eu irei ao teatro ou ao cinema, sempre que entenda que posso e devo ir, mas não venho pedir essa autorização. Sou uma pessoa doente, tenho passado amargos dias preso nas camas dos hospitais e nunca bispo algum se preocupou em alegrar as minhas dores nem me visitou sequer. Por isso, quando entender que uma distracção me faz bem e me pode dar alegria sem me causar prejuízos, irei. Se lhe vierem dizer que eu estive lá, já está informado e não estranhará.
– Você é terrível, Nuno de Montemor!
– Pois sou, mas sou assim mesmo. E seria melhor que os bispos, antes de tomarem medidas destas se preocupassem mais com as necessidades dos seus padres.
Apesar de ser um espírito muito cioso da sua autonomia, tinha amigos leais, a quem escrevia longas cartas quando estava ausente e para os quais usava da maior franqueza. Entre eles são de salientar alguns escritores muito conhecidos, como Augusto Gil, António Sardinha, Afonso Lopes Vieira, Hipólito Raposo, Pequito Rebelo e alguns mais. Não era contudo um amigo de fácil convívio, pois exigia que se interessassem por aquilo que a cada momento o absorvia, que o ouvissem, sem contudo aceitar facilmente reparos. Este era o seu maior defeito e que bem pequeno é, ao lado das suas qualidades.
Quando tinha algum livro para publicar, deslocava-se a Lisboa e ali permanecia uns dias. Nessas alturas tornava-se absorvente. Os amigos tinham de lhe ouvir ler o texto do princípio ao fim e só depois o entregava para a impressão. Não se importava que tivessem trabalhos urgentes; eram forçados a deixar tudo para o atenderem.
Numa ocasião ainda não decidira qual o titulo a dar à obra. Concluída a leitura, pediu que cada um dos presentes lhe desse uma sugestão por escrito. Monsenhor Moreira das Neves, que não assistira à leitura por ter estado ocupado com o trabalho do jornal «Novidades», não foi dispensado de o fazer também. Recorreu então a um dos ouvintes, que lhe expôs o assunto da obra, após o que apresentou a sua proposta. Tirado à sorte, foi precisamente o título por ele sugerido que o acaso escolheu — E o Sangue que se fez Luz.
A sua amizade com este escritor começou quando Nuno de Montemor publicou «A Paixão de uma Religiosa». Depois de o ler, Monsenhor escreveu-lhe a dar uma opinião. Daí veio um conhecimento e uma convivência que se manteve até à morte para o escritor guardense e se conserva ainda no espírito do seu amigo, que hoje o recorda com estima e saudade, ao falar-nos dele:
– «Nuno de Montemor era muito nervoso e… tinha as suas manias! Uma vez convidei-o para ir a minha casa, almoçar comigo, convite que ele pronta e alegremente aceitou. Ele era simples, espontâneo e alegre como as crianças. Ao chegar a casa porém, verificou que era preciso subir uma escada exterior, em caracol. Pois não subiu. Preferiu ficar sem o almoço e foi-se embora». (Entrevista com Monsenhor Moreira das Neves).
Eu penso que o seu «nervosismo» não o deixou. Não seria «mania» mas sim doença. Talvez o seu sofrimento justifique o seu temperamento exaltado e explique aquele nervosismo.
Este breve episódio não arrefeceu a amizade nem impediu Nuno de Montemor de retribuir, quando por sua vez Monsenhor veio à Guarda fazer uma conferência no «Seminário sobre a Imprensa Periódica».
Contou-nos que o seu amigo andara oito dias a preparar a casa para o receber e foi mesmo esperá-lo ao comboio. Não o deixou um momento, enquanto ali permaneceu e acompanhou-o mesmo ao Seminário, embora lá não fosse há mais de trinta anos. Parece até que nunca mais lá voltara desde que terminara os estudos… mas foi, custasse-lhe ou não, para que a proverbial hospitalidade dos beirões não ficasse desmentida.
Presidiu à conferência o Bispo da Diocese, D. Domingos Gonçalves. O conferencista referiu-se aos trabalhos literários de Nuno de Montemor e manifestou o apreço em que os tinha e o seu valor como divulgadores da moral cristã e colaborador da Imprensa Católica. O Senhor Bispo agradeceu a referência ao escritor, dizendo que era motivo de orgulho para a Diocese.
Isto deixou-o muito satisfeito, por ver reconhecidos, na sua terra e perante os seus contemporâneos, os seus méritos. Talvez tivesse sido esta a única homenagem pública, que recebeu em vida, na sua terra, ele que tanto falou das suas paisagens e da sua gente… E foi ainda um estranho a essa terra que pôs em evidência o seu valor. É a confirmação do milenário ditado: «Nenhum profecta é bom profecta na sua terra.»
Estes são alguns dos muitos episódios da vida de um homem religioso que soube amar a Deus, mas que não se esqueceu dos seus irmãos e que considerava como elementos essenciais da paz social, a justiça e o Amor entre os homens.
2 – O ESCRITOR
Nuno de Montemor cultivou vários géneros literários: poesia, romance, conto e drama.
Estreou-se em 1909 com a poesia «Oração da Soledade». A partir daí nunca mais parou de escrever até que a morte o separou desta vida. A sua última obra «Rapazes e Moças da Estrela», foi escrita já com muita dificuldade, porque as mãos trémulas se negavam a traçar as letras, mas o seu cérebro fértil em ideias e a sua imaginação ainda viva, exigiam sempre mais e mais.
O escritor retrata-se nas páginas dos seus livros, sejam eles escritos em prosa ou poesia. É a sua nobreza de sentimentos, o seu coração bondoso que está ali todo inteirinho. Quando escreve, é o moralista que ensina e aconselha, anima e consola.
Os seus livros são páginas de optimismo e sã alegria, onde para cada mal há sempre um remédio.
«De cosmovisão optimista, estilo fluente e facilidade de visualização poética, encontra sempre tuna aberta para a Redenção, ainda que seja preciso violentar as leis normais, complexas e lentas, dos processos íntimos de maturação.» (Maria Aurora Oliveira, Enciclopédia Luso-Brasileira.)
Talvez por isso mesmo o público recebesse tão bem os seus livros, sobretudo na sua região.
As gentes da Beira conhecem-no e lêem-no com agrado. A Biblioteca Nacional de Lisboa, possui todas as suas obras. Mas atraiu também a atenção de estrangeiros. O poema «Amor de Deus e da Terra» foi vertido para italiano pelo escritor Guido de Batelli. O romance «A Paixão de uma Religiosa» foi traduzido para língua castelhana, bem como «A Maior Glória» pelo espanhol José Andrés Vasquez. Com estas obras se iniciaram as edições Hispano-Portuguesas da Colecção Lar. Traduziu-se para francês a novela «O Avô».
Nuno de Montemor era um homem que tinha dentro de si grande criatividade e escrevia facilmente um texto, pois as ideias afluiam-lhe ao cérebro em abundância; mas não se limitava a escrever o que a sua imaginação lhe ditava. Revia muitas vezes e corrigia até lhe parecer que já podia publicar.
«As suas obras eram sempre objecto de grandes cuidados, numa ânsia incontida de perfeição literária e artística, para a qual pedia o auxílio de consagrados pintores». (Jornal «Novidades»).
Os artistas que ilustraram algumas edições foram Clotilde Mateus e Roque Gameiro.
No desejo de estimular e apoiar os novos escritores, propôs a organização da «Colecção Véritas», à qual viriam a pertencer obras inéditas a que se reconhecesse real valor para que fossem editadas. A referida colecção iniciou-se com o seu livro «O Avô», em 1928, e depois mais alguns volumes se publicaram, mas não deu os resultados que ele esperava, dada a falta de participação de outros escritores.
Por estar muito próximo de nós no tempo, o que escreveu é ainda actual e lê-se com interesse e prazer. Fala das coisas e homens do seu tempo, para homens do seu tempo. Por isso agradou e continua a agradar ainda hoje.
2.1 – O POETA
Nuno de Montemor era acima e antes de tudo poeta e poeta lírico. Os seus versos, sem métrica e sem rima, fazem lembrar os salmos, não só pela forma mas também pelos temas e pela espiritualidade.
Embora tivesse cultivado mais o romance e a novela, «é principalmente como poeta de rara sensibilidade e de sabor campestre que Nuno de Montemor passará à nossa História Literária, porque mesmo quando escrevia romances, e neles tem páginas de grande elevação espiritual e beleza paisagística, o escritor é sempre grande poeta e principalmente poeta bucólico». (Jornal «Novidades»).
Entre os seus livros de poesia podemos destacar – «Amor de Deus e da Terra», «Água de Neve» e «Cântico da Dor» – além de outros e de vários poemas publicados em revistas e jornais de que era colaborador. Seria interessante que alguém se lembrasse de fazer um trabalho de pesquisa e reunisse num volume todas essas poesias dispersas. Estou certa de que prestaria um bom serviço à pena de Nuno de Montemor ao mesmo tempo que contribuía para o enriquecimento do património cultural da sua terra.
Tenho algumas pistas para começar essa busca, que aqui deixo para quem as quiser aproveitar: a revista «Lumen» e «Brotero», o Jornal «Novidades» e «Voz». No semanário «A Guarda» de 20 e 28 de Fevereiro de 1950, encontram-se também algumas indicações úteis. Depois, à medida que a consulta avançar, novos caminhos irão surgindo, os horizontes ir-se-ão alargando e chegar-se-á ao fim com a recompensa que dá o trabalho que se executa com entusiasmo e dedicação.
Não é justo que esses belos versos fiquem sepultados no pó das bibliotecas, até se apagarem. Se eles forem apresentados ao público, compilados num livro, haverá muito quem os leia, mas se ali permanecerem, ficarão mortos e para sempre ignorados.
É preciso arrancá-los ao esquecimento, trazê-los novamente à luz, restituir-lhe a vida de que foram animados. Aqui fica a sugestão e oxalá que alguém se disponha a passá-la de sonho à realidade.
2.2 – O ROMANCISTA
A produção mais abundante do autor, verificou-se no romance, onde se encontram páginas admiráveis de realismo ao descrever a Natureza. É sempre da Beira, da Beira Serra, que ele nos fala.
E que realidade social nos apresenta? A que conhece: pessoas simples do Povo, a maior parte das vezes; a gente da sua terra, se exceptuarmos uma ou outra personagem de um nível social mais beneficiado.
Para quem escreve Nuno de Montemor? Para o seu povo, a quem fala com simplicidade e clareza e o povo entende-o. O que ele quer dizer não está oculto em preciosas roupagens, não precisa de intermediários para se fazer entender. Ele pertencia-lhes e sabia como falar-lhes. Ele era povo.
Todos os seus livros são moralizantes e cada um deles é a apologia de uma virtude ou a condenação de um vício, do qual é sempre possível libertarmo-nos. O bem vence sempre, graças à acção da Providência. Por vezes as cenas e o desenrolar dos acontecimentos não são reais, mas isso não preocupa o escritor. Ele tem um fim – enviar uma mensagem – e desde que seja atingido, está justificado o seu idealismo. O facto de apresentar a acção num plano ideal – o que gostaria que fosse e não a amarga realidade, não o diminui, pois a literatura válida não é apenas a realista. O espirito humano também se alimenta de sonho; não lhe recusemos esse alimento.
Mas há mais nos seus romances – há a questão social, há política. Onde isso é mais patente é em «A Hora Vermelha», «F1ávio», «Um que não mentiu», «Depois da Queda» e «O Crime de um Homem Bom».
Em meu modesto entender, o problema social é apresentado de forma correcta e a simpatia pelos oprimidos torna-se evidente. O primeiro livro que citei gira todo em torno de uma situação de injustiça social e que ele torna patente pelo contraste. O Piparra não é mau por natureza, é um revoltado contra as suas condições de vida. Os seus sentimentos são nobres, mais nobres do que os do seu vizinho rico, o Dr. Silvano, que não se interessa absolutamente nada com as carências do seu semelhante. Tudo está bem, desde que a sua vida corra bem e a sua produção lhe chegue para o necessário e o supérfluo. O pobre procura fugir à miséria, tenta a solução dos seus problemas, mas o caminho que escolhe só conduz a decepções e amarguras. O processo não é a luta, é o amor.
O assunto deste livro é de ontem e de hoje, e a sua problemática, com diferentes propostas de solução, mantém-se, sem que até hoje alguém tenha encontrado a melhor forma de o resolver. É preciso, é urgente que a miséria desapareça, mas qual será o caminho para o conseguir? É aqui que os homens entram em desacordo e em desacordo permanecem em nossos dias.
Não poderei passar adiante sem uma rápida análise a «Flávio», livro de conteúdo riquíssimo no campo político, pleno de actualidade. O seu tema são os partidos, apresentados no seu aspecto mais negativo. É válida a denúncia da repugnante fraude eleitoral, mesmo do crime, do suborno e até da corrupção de altos magistrados. Isso foi autêntico, foi uma vergonhosa realidade. Mas não posso estar de acordo, de forma alguma, com a solução proposta:
Os partidos prevaricam? A culpa é do sistema constitucional. Elimine-se o sistema, suprimam-se os partidos. Escolham-se homens puros e íntegros e voltemos à Monarquia tradicional. Sejamos o povo que somos, respeitemos a nossa História e a tradição.
Estes eram, em síntese, os princípios integralistas, embora apresentados de uma forma muito simples e linear.
No que se refere ao sermos o povo que somos, estou inteiramente de acordo com este desejo de Nuno de Montemor, bem como dos seus amigos Integralistas. Outros homens com mais autoridade que eu, defendem o mesmo princípio e rejeitam importações que não se identificam connosco.
Comparemos a opinião de um dos nossos maiores Historiadores coma de um dos mais íntegros e busquemos depois a sua relação com o pensamento de Nuno de Montemor.
«Não faz sentido aplicar indiscriminadamente esquemas interpretativos e paradigmas de acção, sem estarmos previamente certos de que entre as sociedades para que foram elaborados e aqueles a que se pretende aplicá-los há efectiva analogia estrutural e paralelismo conjuntural. Nada resolveremos copiando servilmente modelos alheios… Se queremos traçar rumos e encontrar a inserção eficaz dos nossos esforços, temos que nos debruçar, sim, com atenção prescrutante sobre a realidade em que mergulha a nossa vida e donde emergem os nossos problemas… Certos círculos tendem a papaguear cartilhas estrangeiras sem fundar a reflexão no húmus nacional… Aplicamos as nossas causas gazuas «abre-te Sézamo» fabricadas para abrir os segredos de outras realidades…» (Vitorino Magalhães Godinho).
Vejamos agora as opiniões de um dos mais populares e íntegros políticos do século XIX, o célebre Bispo Liberal de Viseu, D. António Alves Martins:
«O nosso constitucionalismo, copiado de Inglaterra, logo deu a conhecer que não é indiferente para qualquer povo a adopção de qualquer forma de governo. Os seus fundadores em Portugal acomodaram-se mais às circunstâncias do tempo, do que às condições etnográficas e morais do povo. Substituíram uma realidade concreta por uma simples abstração metafísica. Ao despotismo antepuseram um sofismo, a todos os respeitos deplorável porque abriu a porta a todos os despotismos, mais revoltantes porque vêm mascarados com a lei, mais vergonhosos, porque são hipócritas, soberanamente ímpios, porque surgem sob o pálio da Liberdade e se fazem anunciar em seu nome. O sistema constitucional tal como se exerce e promete exercer-se, corrompe, não educa». (Jornal «A Liberdade»).
Estes princípios são perfilhados por Nuno de Montemor e duma maneira geral por todos os integralistas.
No seu romance «Flávio», a narração do episódio das eleições é uma ilustração destas verdades. Não apresenta as suas doutrinas organizadas num sistema, oferece-nos a realidade tal qual ela foi, nos seus variados aspectos. Os princípios estão lá, mas nós é que tiramos as conclusões. A violência eleitoral e a fraude são abertamente denunciadas e com tal eficiência que todo o carácter honrado e íntegro, sente a maior repulsa e indignação.
Expostos os factos com este realismo, todos lhe vêem os defeitos. Os males detectados são os mesmos que os dois autores atrás referidos apontam. O princípio geral que os poderá eliminar é também o mesmo – a busca da nossa identidade, para que seja assumida com responsabilidade. Para isso procuremos no passado.
Mas analisemos algumas passagens onde a definição é mais evidente:
«… a culpa maior é desta novidade estrangeira que não se adapta a Portugal.» (Nuno de Montemor, «Flávio»).
Este é o mal para os três escritores. O desacordo surge no meio de o banir. Enquanto que os dois primeiros não propõem a eliminação do sistema, mas o seu aperfeiçoamento até que a realidade coincida com os princípios da liberdade, Nuno de Montemor diz-nos:
«Por ventura as cortes de Coimbra não repeliram a filha de D. Fernando, para coroarem o Mestre de Avis?
E por muito grande e justa que fosse a veneração pela memória de D. Duarte, não lhe inutilizaram as cortes o testamento, tirando o poder à rainha viúva, para o deporem nas mãos do Duque de Coimbra?
Que desejo enorme não teria D. João II de legar o trono a seu filho bastardo, D. Jorge! E, todavia, foi o Duque de Beja que lhe sucedeu.
Veja V. Exa que el-rei D. Miguel não usou o título de rei, sem lho confirmarem as Cortes de 1828!
Onde está, pois, o poder absoluto e a impossibilidade de remediar o defeito de um nascimento infeliz?
Compare, V. Ex.a, agora, este defeito de tão fácil remédio, às lutas sangrentas, às revoluções estéreis e contínuas que ocasionam as eleições dos presidentes da república, em certos países de tradições monárquicas!» (Nuno de Montemor, «Flávio»).
É a proposta clara, com argumentos válidos, mas mal utilizados no que se refere à época, de um regresso à monarquia de regime absoluto.
Vê-se que Nuno de Montemor era bem intencionado e que o levou a defender esta doutrina foi o desejo de eliminar os abomináveis males e distorções do constitucionalismo. Mas a questão foi mal posta e daí a errada solução. A meu ver o que se devia tentar banir era o mal e não o sistema.
Assim enterrou-se tudo mas não se destruiu e por isso o problema permanece hoje. Estamos no ponto onde ficámos, enquanto as outras nações avançaram. Nós debatemo-nos com as mesmas dificuldades, enquanto que outros povos, que mantiveram o sistema já as venceram há muito.
A função educativa e esclarecedora dos partidos, não a viu Nuno de Montemor, não a viram os integralistas, talvez porque eles nunca a desempenharam em Portugal e continuam a não a desempenhar cabalmente ainda hoje. Eram mais facções pessoais do que grupos de pessoas comungando dos mesmos ideais e procurando fazer aceitar os mesmos princípios.
Deveria ser pela livre discussão das suas doutrinas, que se esclareciam as populações. Não aconteceu assim, temos de recomeçar.
Parecem-me estes dois livros os mais actuais, porque tratam e debatem problemas que continuam por resolver mas nos quais estão interessados todos os povos do globo. Os intelectuais construíram teorias, os ideólogos espalharam doutrinas, as dificuldades são reais, o mal permanece. A aspiração de Nuno de Montemor, de que a Humanidade se abrace, no amor que brota da justiça, aguarda a hora da sua efectivação, e com ele desejamos ardentemente que ela se concretize um dia.
As obras que tratam valores morais, foram dos séculos passados, são do presente e serão do futuro. São conquistas da Humanidade, reconhecidos como valores que a sociedade aceitou e que a fizeram progredir. Recusá-los hoje seria retrogradar. É isso que Nuno de Montemor nos quer dizer em muitos dos seus livros, entre os quais é de citar «Um que não mentiu», onde condena a guerra e todas as formas de violência. O escritor João Camarinha recusa autorização a ingleses e alemães para explorarem o volfrâmio das suas terras, apesar de isso resolver os problemas de Vilares da Beira, pela simples razão de que esse minério iria matar muita gente e causar grandes sofrimentos.
Eliminar a dor sob qualquer forma que ela atormente o homem, é nele uma ideia fixa. O ataque à calúnia, à deturpação, à mentira, é utilizado em «A Paixão de uma Religiosa» e em «O Irmão de Luzia». Pela análise dos personagens, verificamos que rejeita as concepções maniqueístas, que agrupam os Homens em bons e maus. Não há bons e maus, há apenas homens com qualidades e defeitos, sejam eles monárquicos ou republicanos, progressistas ou regeneradores. As situações em que se encontram, influenciam o seu comportamento, sem destruírem contudo a sua natureza, na qual Deus vai actuar para que as dificuldades se vençam.
Isabel não era má; os seus erros devem-se a circunstâncias em que a vida a colocou, erros que foram corrigidos com a ajuda humana e fraterna, apoiada na força sobrenatural.
Paulo, apesar de estar ao serviço de um ideal equívoco, era digno, enquanto que Luís de Souto, republicano também, mas não por um ideal, antes em seu próprio serviço, tem um carácter mesquinho e corrupto.
Nuno de Montemor não hesita em elevar as suas figuras, mesmo que as concepções delas sejam diferentes das suas. Foi o que acabamos de verificar, é o que confirmamos com Florina, figura central de «Coração de Barro». Esta professora, não sendo religiosa, tem mais méritos e virtudes que aquelas que se querem fazer passar por boas católicas. Aqui, mais uma vez se serve de situações reais para tema do seu livro, embora os desenrole e relacione num plano imaginário. Como sempre as cenas passam-se na Beira. Desta vez, a povoação é Cabrosa, onde faz passar perante os nossos. olhos, como se fosse um filme, a vida da professora. As dificuldades que encontra, não só no aspecto material como também no espiritual, são destacadas ao longo de todo o livro. Os problemas regionais, com a rivalidade entre povoados limítrofes, os enredos, as ambições, os choques de interesses familiares. E a moralidade e o esforço da professora, que tudo tenta para criar entre as pessoas laços de fraternidade e amor, que soluciona os problemas. A contrastar, a figura do rico da localidade, que tudo domina pelo dinheiro, mas que é podre de sentimentos. A coroar tudo isto, a figura do padre, alma benfazeja, sempre no desempenho da sua missão evangélica.
Desarreigar preconceitos sociais é outro dos seus objectivos. Sentimos isso ao longo das páginas de «Depois da Queda».
Fundamentado numa ferida social, constrói um romance destruindo um vício e fazendo brotar uma virtude. É a história de uma prostituta. Como psicólogo que é, analisa a vida da personagem e o que ela representa na sociedade. Apesar de ser um elemento nefasto, é uma boa alma e tem grandes qualidades humanas. Um rapaz de «bem» apaixona-se por ela e quer casar. Dado às suas virtudes morais, ela não aceita. Tudo é dito num tom poético, e até, por vezes, irreal, mas a sua intenção, acabar com a marginalização de seres humanos, talvez dê frutos um dia. Esta é uma obra de futuro. O preconceito é ainda muito forte para que possa ser destruído.
E é assim que a pena de Nuno de Montemor nos vai mostrando as diferentes facetas de um todo que é a realidade.
Mais um tema faz nascer um novo livro: «O Crime de um Homem Bom», onde podemos recolher informações históricas.
Para além do crime passional, está o criminoso, que depois de cumprir a sua pena nas costas de África, consegue regenerar-se e ser um elemento útil à sociedade. Vai para o Brasil, enriquece e regressa à Pátria. É agora uma figura bem apresentada, anéis nos dedos, distribuindo moedas às crianças. Introduz na sua terra o progresso, com os melhoramentos e obras de beneficência que faz. A caridade é a característica essencial do brasileiro. Tudo é saudosismo – o cruzeiro, o sino da Igreja, a paz do campo… É a poesia bucólica, na prova do romance. Mais uma vez chama à atenção para a pobreza dos habitantes, ao mesmo tempo que explica os costumes e destaca a sua religiosidade.
Afirmei algumas páginas atrás, que Nuno de Montemor era povo, e povo rural, posso agora acrescentar. Os conhecimentos da vida agrícola, as indicações sobre o tratamento de plantas, vêm confirmar a minha asserção. Só quem observou vezes sem conta pode descrever aquelas cenas e ele só fala do que conhece e sente.
Os temas religiosos são também desenvolvidos nalguns dos seus trabalhos, como é o caso de «Maria a Pecadora», sobre a vida de Santa Maria Madalena, «As Duas Paixões de São Paulo», «Luz de Fátima», drama que o autor sempre desejou ver representado, «A Virgem», sobre a vida de Nossa Senhora e que foi bastante criticado por alguns sacerdotes, conforme nos dá conta uma carta escrita a Monsenhor Moreira das Neves, datada de 20 de Outubro de 1957.
Em todas estas obras procura destruir o falso conceito beato de religião e substituí-lo por uma prática de vida de acordo com os princípios propostos à Humanidade por uma religião que foi factor de progresso e libertação humana.
Creio que estas obras nos bastam para tirar conclusões. Poderia alongar o meu trabalho estendendo-o a uma análise exaustiva de todas as obras, mas parece-me desnecessário. Termino aqui o meu estudo, sem que o assunto fique esgotado. Muito mais haveria a dizer, mas sou forçada a concluir porque o tempo urge.
CONCLUSÃO
Feita a análise de toda a obra de Nuno de Montemor e ouvido o testemunho dos seus contemporâneos, ficámos convictos que foi um homem íntegro e bom, que procurou desempenhar no mundo a missão de que se sentia encarregado contribuir para a destruição das barreiras que separam os homens, a fim de que todos se pudessem abraçar fraternalmente. Era irmão de todos os homens, disso estava convicto e procurou demonstrá-lo por obras e pela palavra escrita. Os seus livros são uma lição de confiança na vida, de Fé na Providências e de amor aos homens, a todos os homens, fossem quais fossem as suas convicções.
Penso que entre uma população onde o preconceito impera ainda hoje, os seus livros podem ser um factor de esclarecimento e muito mais o podiam ter sido no seu tempo se os tivessem compreendido. Via-se nele apenas o escritor português católico, mas Nuno de Montemor é muito mais do que isso. O seu espírito não tem fronteiras, não selecciona os homens. Mostra que entre dois seres humanos há mais afinidades do que diferenças e que é sempre possível o entendimento.
É o escritor da esperança e do amor. Será que os seus contemporâneos o compreenderam? Sugiro que as suas obras sejam mais divulgadas na Beira, que elas façam parte de todas as bibliotecas rurais, que se organizem sessões culturais nas freguesias e se comentem. Temos em nossas mãos um
precioso factor de cultura, saibamos aproveitá-lo!
(Parte 2 de 4 – Continua.)
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José Carlos Lages
Gostei e aprendi. são estes estudos que engrossam as fileiras da nossa cultura beirã. continue a projetar as terras e as gentes de Ribacôa.
Muito sensibilizada, agradeço, Paulo Leitão. É modesto este pequeno estudo. Obedeceu a regras do concurso. Estava limitado em tempo e dimensão. Foi publicado sem me informarem e devia ter sido visto e corrigido por mim antes de ter ido para a impressora, pois tem algumas gralhas e até um ou dois erros.
Por incrível que pareça nunca fui informada da sua publicação e nem um exemplar me ofereceram. Quando o vi, casualmente, já só havia dois. Comprei-os logo. Se não tivesse sido um mero acaso, nem eu sabia hoje que tinha esse trabalho publicado.
Excelente trabalho sobre o grande homem e escritor que hoje, dia 4 de Janeiro, a Junta de Freguesia de Quadrazais evoca.
A revelação deste quase ignorado estudo faz emergir afinal duas grandes figuras das letras beiroas: Nuno de Montemor e Maria Máxima Vaz.