Antes de mais, deixem-me explicar uma coisa das escritas. Todo este artigo é escrito no presente: «No Casteleiro dizem isto ou aquilo» ou «na minha é assim e assado» –, saibam todos que o que quero dizer é um pouco ao lado. Quando digo que há ou não há isto ou aquilo na minha terra, o que estou a dizer é que para a geração anterior à minha as coisas são como sempre foram e ainda continuam… A geração a que pertenço e as seguintes tiveram em geral outros caminhos e algumas coisas mudaram; os mais jovens já nem sabem que isto alguma vez foi assim. Mas é bom que um dia o saibam…
Esta semana resolvi pois manter a temática das formas de ser e de estar, das formas de pensar e de falar da minha aldeia de há 40 ou 50 anos atrás… Isso, porque, quase mérito algum da minha parte, esta semana aconteceu algo estranhamente exuberante: lancei no «Facebook» um jogo e foi um sucesso repentino.
No final do dia de quinta-feira, quando estou a escrever, já lá vão perto de 700 comentários sobre ditos populares da nossa zona – alguns dos quais só da região, outros que também se usam noutras paragens. 700 inserções em três dias: é obra! Aconteceu tudo… (Aqui.)
Esse sucesso levou-me a pensar que esta coisa das memórias de cada um é o que de mais importante temos e pelos vistos muitos sabem valorizar muito isso mesmo. Fico muito satisfeito com essa realidade. E resolvi continuar a propor outras formas de participação no levantamento das nossas vivências antigas para que fiquem registadas em número e qualidade máximos…
Portanto, também aqui, no «Capeia», vou continuar esta tarefa. Venham mais modos de ser. Venham mais pormenores, mais piadas, mais daquelas insinuações do falar popular.
Do pintcho ao denário…
Começo por recordar a quem já não se lembra que muitas palavras usadas no Casteleiro diferem bastante na pronúncia e na grafia possível do que as gramáticas e os dicionários aconselham.
Assim, informo que no Casteleiro as panelas não têm tampas: têm têstos, como já escrevi antes ou (melhor ainda) têm sampas. Os animais não comem a erva do lameiro, mas sim a da ervais (ervagem).
Na minha terra, não há lamaçais: há, sim, lapatchêros. Os cachos de uvas são gatchos, as fechaduras são pintchos. E sabem o que é o cortelho? É a pocilga, o local onde permanecem os animais…
De seguida, quero repor uma estória bem típica da minha aldeia. Contei-a um dia aqui e foi muito bem recebida. Vem a propósito, porque traduz uma situação de vida em que se confirma também um dito popular, que é o seguinte: «Não peças a quem pediu nem sirvas a quem, serviu». Mais sabedoria concentrada em tão poucas palavras era impossível…
Na minha aldeia, se alguém tem uma certa «pose», dizia-se assim:
– Olhem bem para aquele denário…
Ou:
– Olha lá o denário dela!
A palavra vem de «donaire»: postura da nobreza e depois até da grande burguesia. É exactamente o que hoje se chama «pose» em bom francês…
Se alguma coisa já era demais:
– Nosso Senhor me ajude, mas nem tanto!
Na minha terra dizem que anda meio mundo a enganar o outro meio.
Uma terra onde, o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Onde as pessoas pensam que, «se não houvesse vento, não havia mau tempo».
Asneiras, não!
Há uma regra sagrada: não se dizem asneiras (palavrões) à frente de mulheres. Mas quando alguém se descuida e sai alguma, há sempre quem diga logo, para desanuviar a coisa:
– Mulher honrada não tem ouvidos.
De uma pessoa que se julga com algumas posses e anda de nariz empinado, dizem:
– Tem a mania que é rico.
E diz logo outra:
– Oh! Tem sete potes e um penico.
Outra palavra corrompida pelo Povo: magarefe. Na realidade, magarefe é o cortador de carnes, como se sabe. Vá-se lá então saber por que é que de um tipo que não é de fiar se diz:
– É um magarefe!
E esta faz-me lembrar que aos miúdos (e não só, mas sobretudo) que andam sempre com parvoíces se diz assim:
– És um bom tcharepe…
Uma pessoa que anda de trombas é um «burgesso». Uma pessoa que não desenrasca as coisas é «um bom colhana». Um tipo que é pequeno e magro é um «meia-pele».
De uma pessoa que tem dificuldade em se movimentar ou que anda devagar e a tartamudear, diz-se que «anda ali a atchalandrar».
Na brincadeira para simular um palavraozeco, mas sem ofender, quando está vento diz-se:
– Está cá uma arais. Mas c’arais!
Eu explico: arais é aragem, claro. C’ arais seria então: «que aragem» Ora o trocadilho aqui consiste em simular a corruptela de corruptela: carago > carais – ingenuidades deliciosas do meu Povo.
A propósito: a palavra «povo», na minha terra, não significa pessoas mas sim a localidade em si mesma. Por exemplo: anda-se lá longe num prédio a tratar das batatas e alguém pergunta:
– Então, o Zé Carlos?
Resposta:
– Ficou lá no povo…
E os esturgidos?
Na minha terra dantes – quando me criei – não havia cenouras. Lembro-me sempre disso: cenouras, lá, nada…
Sou de uma terra onde havia um pânico de que aparecessem milhanos e milhafres porque se atiravam às galinhas, as apanhavam com as patas e iam embora com elas: matavam-nas e comiam-nas. Mas atenção: no Casteleiro, não há galinhas: são pitas. Uma terra onde não há noivos: há esposados. Onde os chinelos são tchanêlos. Onde os ovos não eram fritos – eram, sim, esturgidos. Onde as claras deslaçam quando eram batidas por uma mulher com o período.
Sou de uma terra onde há (havia) domingos e dias santos em vez de feriados – mas onde os mais rigorosos eram os dias santos de guarda: aí, nada a fazer: não se podia mesmo fazer nada nos campos.
Uma terra onde não há bolotas mas sim bolêtas. Onde, além de figos, há também abêberas e figotas. Onde devagar se vai ao longe e se aconselha: «Devagar, que tenho pressa!» Onde se bebem uns copanázios e uns trauliteiros do caneco!
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Notas finais
1. O «Serra d’Opa», n.º 17, aí está para ser lido, com toda a notícia verdadeiramente interessante para a nossa zona – na minha opinião, claro. Pode consultar tudo… (Aqui.)
2. Na página «Descendentes do Concelho do Sabugal» estão a decorrer os jogos regionais de ditos populares (na semana passada) e de adivinhas (esta semana). Pode consultar tudo através da página referida ou seguindo por… (Aqui.) Mas atenção: é muuuuita leitura, porque a «acorrência» tem sido um exagero!
3. As fotos com que ilustro a crónica são mais uma vez uma homenagem justa à geração que me ensinou tudo isto. Agradeço a Anabela Alexandre tê-las disponibilizado na sua página do «Facebook».
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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Meus caros,
Gostava de deixar mais aclarada a minha visão do mundo da comunicação.
Para mim, há sete patamares do sistema de comunicação, hoje:
1. Mensagem afectiva (muitas vezes usada e abusada na política);
2. Mensagem recordatória;
3. Mensagem noticiosa (só aqui é que entra a notícia, a novidade obrigatoriamente);
4. Mensagem opinativa;
5. Mensagem afectivo-recordatória (muitas das minhas crónicas vão nesta linha, e procuro sempre escrevê-las sem saudosismo – pouco sadio, em geral – mas antes numa perspectiva de homenagear os que estão para trás na História ou na vivência);
6. Mensagem laudatória (típica das homenagens, mas tantas vezes abusada, como, em meu entender, se está a fazer hoje, erradamente, com Mário Soares e com pouco efeito positivo, tanto para o País como para o PS);
7. Mensagem irracional (usando o terror, seja físico, seja psicológico – surte efeitos de curto prazo, mas sempre contra-produtiva, passado o efeito ou a ameaça). Os fascismos, as ditaduras, os terrorismos não conhecem outra mensagem para seu uso… como sabemos, pelo menos aqueles que tentaram comunicar em tempos idos e encontraram pela frente a mensagem de terror do poder da altura (Salazar e Marcelo, no caso português).
Reparem que nem falo dos conteúdos de cada mensagem… Aí poderemos ter pano para mangas, mas noutra sede, um dia…
Desculpem abusar da vossa pachorra com estas coisas. 🙂
Caríssimo PLB,
Obrigado pelas achegas e pelo apreço sempre demonstrado.
Vou continuar…
Concordo que se deixem estas coisas para memória futura.
Caro José Carlos Mendes
Registo a curiosidade de, em algumas terras, dizerem «laparchinar», significando chapinhar com os pés na água ou na lama (no lapacheiro ou lapachéro – como você registou).
Ao seu «donaire» corresponde o DONAIRO da raia, que significa, como o seu, elegância – «Fulano tem muito bom donairo» – expressão proferida na Lageosa da Raia, segundo registou a linguista Clarinda Azevedo Maia no seu estudo “Os Falares Fronteiriços do Concelho do Sabugal e da Vizinha Região de Xalma e Alamedilla” (1964).
Quanto a «charepe», na raia o termo refere-se a pessoa desprezível, sem qualquer crédito, e da qual os outros fazem troça – uma pequena nuance, afinal. É curioso que os contrabandistas de Quadrazais chamassem «charepe» ao copo de quartilho (de vinho) que bebiam na taberna.
Quanto aos termos «magarefe» e «colhana» não ouvi, pelo menos com o sentido que lhes dá, e os autores que estudei para elaborar o léxico de Riba Côa que venho publicando a conta-gotas, não lhes fazem referência.
No fundo, concordo com o João Duarte. Os termos variam de terra para terra, mas com pequenas variações fruto das curruptelas – afinal os povos conviviam uns com os outrps e entendiam-se perfeitamente.
Caro JD, obrigado pela apreciação que faz da escrita. Quanto aos conteúdos: não é minha intenção nestas crónicas trazer para aqui novidades. O meu objectivo é divertir-me e divertir quem gosta. Mas isto tem ainda outra finalidade: deixar estas coisas escritas. Daqui a 500 anos fala-se aqui alemão ou chinês e já ninguém se lembra destes «linguajares». Estou a brincar mas talvez menos do que parece…
Já agora, JD: saiba que no Lar do Casteleiro, onde estão as pessoas que diziam e dizem estas coisas, tem sido um delírio, ao que me contam, porque a Técnica de Animação lhes tem lido estas linhas – e o meu maior prazer é saber que a minha mãe e as dezenas de pessoas que ouvem ficam encantadas a ouvir.
É a minha melhor recompensa.
Assim, vale a pena.
Concorda, JD?
A crónica está bem escrita, sem dúvida… Só que, como já referi várias vezes, não há muitas novidades. Este “linguajar” usa-se em quase todo o concelho, com pequenas “nuances” e , em alguns casos, até em todo o país.
Caro Professor Joaquim Gouveia,
É um prazer ler essa anotação. Será que me daria boa nota?
A sério: obrigado pelo apreço.
Um gd abraço aí para o meio do frio (mas aqui neste instante também não está para brincar: estão 6ºC!!!!).
Zé Carlos!
Sem dúvida que as suas crónicas constituem uma mais valia para o Capeia e para todos aqueles que têm o grato prazer delas desfrutarem.
Elas condensam, o que de mais belo representa a matriz da cultura de um povo e arte de bem escrever e comunicar.
Destaco esta crónica por, na minha opinião, ser especialmente bonita e muiiito bem escrita.
Abraço.
Joaquim Gouveia