Espreito à janela no final da tarde e colho a sumptuosidade da Serra.
Ao alcance de um olhar mais curto aplana-se o vale que, no limite poente, se prolonga arável, até ao início da encosta.
Do outro lado da crista da montanha adivinha-se um outro vale, o Vale do Mondego, profundo, abrupto, algo apertado, quente e fértil no seu vértice e ainda verde após o términus de uma primavera tardia. O tempo sulca, agora, os inícios de julho oferecendo excessivos calores estivais.
Sabe-se, claro, que pelo dito Vale se esvaem as águas do Rio Mondego, oprimidas, de quando em vez, pela alteza das margens, embora fazendo em lentidão estival, o seu percurso à procura de planuras mais livres, mais vastas e mais próximas da foz.
A Este, neste outro monte, um monte povoado mas vizinho de todos os montes serranos, ergue-se a cidade da Guarda, envolta e distraída no movimento da tarde oferecendo-se-me como ponto privilegiado de observação.
Entre a urbe e a Serra ainda pastam vacas castanhas e ovelhas esbranquiçadas desfrutando o verde das pastagens envoltas no silêncio de um absoluto rural.
Entre a cidade e a montanha espargem-se, ainda, pequenas quintas que insinuam tradições e labutas rurais.
Algumas dessas quintas surgem esmorecidas, fazendo imagem com casas de paredes graniticamente amarelas. Há, no entanto, algumas casas mais visíveis, aquelas que foram caiadas. Umas e outras são marcadas pelo vermelho dos telhados escurecidos pelo tempo e todas se desviam para a Serra como se fugissem, como se quisessem evitar a açambarque da cidade.
Pairam algumas nuvens nesta tarde de entrada em Julho.
A névoa havia chegado pela manhã mas, ao longo do dia, a humidade mais baixa foi-se dissipando e, no céu, foram-se agrupando as nuvens que formaram meia dúzia de grupos espessos e algo cinzentos. Agora, ao final do dia, um leve vento dispersa-as. Parte delas disfarçam-se e expõem-se em figuras pitorescas. Algumas alongam-se e emagrecem deixando-se repassar pelos raios de sol ardente fazendo lembrar pedaços de um enorme manto que se esbranquiça na passagem quente da luz.
Lá mais além, na altura longínqua da montanha, parecem juntar-se todas as nuvens num doce enlace entre a Serra e o Céu.
Olhando assim vou esquecendo azáfamas e vou entrando no abstrato mundo da imaginação onde tento decifrar e comparar formas associando-as a imagens reais ou mesmo a acontecimentos quotidianos.
Neste meu idear, a montanha aproxima-se mostrando-me, ao fundo da encosta mais próxima, uma pequena parcela de terra amanhada que, na sua forma, em tudo se assemelha a um livro aberto. Surge-me cercada de árvores. A meio corre um pequeno regato que divide a quintinha em duas partes iguais, sugerindo-me duas páginas. Notam-se os regos da lavragem transversal, em linhas de letras que foram verdes, escritas com cereal semeado. Agora, depois de maduro, o cereal deu ao texto uma cor amarelada. No canto superior da página direita ao texto ilustra-se com a alvura de uma casinha caiada.
Eis, portanto, um livro aberto. Escreveu-o um lavrador ao semear. Editou-o a natureza. Contém muita tradição. Fala-nos de saberes ancestrais e é de leitura gostosa.
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista no Capeia Arraiana desde Maio de 2011)
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Lido com o prazer a que há muito me habituaste.
Um abraço Capelo