A Casa Pia no Portugal Democrático (1974-2013). Continuamos, este domingo, a publicação de uma síntese sobre o passado e o presente da Casa Pia de Lisboa.

António Aurélio da Costa Ferreira dizia que as revoluções, apelando embora à transformação, à mudança, não devem ignorar a tradição, a história, o património herdado. Infelizmente, boa parte dos processos revolucionários foram momentos convulsivos que, pelo menos temporariamente, não deixaram pedra sobre pedra. E o «25 de Abril de 1974» não foi excepção: a fase mais radical do processo revolucionário agitou toda a sociedade portuguesa e a Escola não escapou às convulsões.
A crise com que a Instituição Casapiana se debateu na década de 70, nomeadamente entre 1974 e 1980, radica em três variantes fundamentais: um défice de lideranças superiores e intermédias, o que permitiu a instalação, sobretudo nos internatos, de um ambiente de liberdade sem responsabilidade; a perda, por parte dos alunos, dos professores e dos funcionários, da «mística casapiana», do orgulho de pertencer a uma escola especial (só os ex-alunos mais velhos traziam o ganso na lapela, como os ex-alunos do Colégio Militar a barretina); e o gigantismo de uma instituição tentacular, com vários colégios e milhares de alunos, muitos dos quais deviam frequentar outras escolas (porque não precisavam daquela) ou não deviam ali ser admitidos, porque constituíam casos tão problemáticos que a Casa Pia já nada podia fazer por eles.
A partir das provedorias de Baptista Comprido, Damasceno de Campos e Luís Rebelo, no começo dos anos 80, procurou-se pôr ordem na Casa Pia, reorganizá-la e modernizá-la em termos de espaços físicos, apetrechá-la para uma educação adaptada aos novos tempos.
Desmassificou-se o internato, substituindo as enormes e caóticas camaratas de 60 ou 70 alunos por lares com pouco mais de uma dezena de crianças ou jovens, incluindo alguns lares fora dos colégios; alargou-se a oferta educativa, sobretudo através da criação de novos cursos técnico-profissionais; abriram-se mais e melhores perspectivas de prosseguimento de estudos; reabilitaram-se os espaços dos diferentes colégios e construíram-se outros de raiz; prosseguiu-se e cimentou-se uma política de colaboração entre a Casa Pia e as diferentes instituições de ex-alunos.
Muito se fez mas muitos outros problemas foram germinando e crescendo, uns porque se ignoravam, outros porque se esconderam debaixo do tapete. Estes, no entanto, acabariam por aparecer depois da explosão da verdadeira «bomba de relógio» que era o caso da pedofilia.
A provedoria de Catalina Pestana, iniciada nos finais de 2002, ficaria marcada principalmente pela necessidade de enfrentar as graves repercussões desse caso, que se foram avolumando e arrastando. O actual Conselho Directivo da Casa Pia de Lisboa (que substituiu a Provedoria) herdou uma situação difícil que, todavia, não demorou nem hesitou em enfrentar. Sob a direcção de Joaquina Madeira primeiro e actualmente de Cristina Fangueiro, o Conselho Directivo prosseguiu a política de desmassificação do internato, foi progressivamente substituindo os lares «intra-muros» por unidades integradas na comunidade, deu prioridade ao recrutamento de educadores bem preparados e bem remunerados, privilegiou a admissão de crianças em risco mas não de delinquentes, foi encaminhando os educandos que, verdadeiramente, não «precisam» de uma escola como a Casa Pia para outras escolas, diminuindo assim o número de semi-internos, acentuou a oferta dos ensinos técnico-profissional, artístico e musical.
Aos Colégios (actualmente designados Centros de Educação e Desenvolvimento) foram atribuídas funções específicas e diferenciadas: uns destinam-se fundamentalmente a acolhimento e encaminhamento; outros encontram-se vocacionados para o ensino artístico (como é o caso do CED D. Maria Pia); outros ainda oferecem o ensino especial (casos do CED Jacob Rodrigues Pereira, fundado em 1834, para crianças e jovens com surdez, e do CED Aurélio da Costa Ferreira, criado em 1996, para crianças e jovens surdocegos); e, finalmente, outros apresentam vasta oferta educativa e formativa nos domínios do ensino curricular (do pré-escolar ao Secundário) e do ensino técnico profissional (incluindo cursos com grande empregabilidade, como relojoaria, optometria, electrónica, energias renováveis, informática, etc.). Para aqueles que revelem capacidades e apetência para a frequência de cursos médios ou universitários, a Casa Pia proporciona bolsas de estudo.
No universo casapiano, a comunidade constituída pelos milhares de ex-alunos viveu intensamente a dramática conjuntura que a Casa Pia de Lisboa atravessou a partir de 2002. As próprias instituições criadas pelos ex-alunos (Casa Pia Atlético Clube – Ateneu Casapiano, jornal «O Casapiano», Associação Casapiana de Solidariedade) não podiam deixar de ser indirectamente afectadas por essa conjuntura adversa e instabilizadora. Perante esta encruzilhada, os ex-alunos da CPL não ficaram indiferentes, antes encararam construtivamente a situação e participaram no ciclo de mudança e de adaptação que se lhes apresentava, valorizando o passado e o presente de uma Instituição que tanto deu ao País e de que este pobre País tanto carece. É minha convicção de que o universo casapiano continua, de alma e coração, ligado a esta escola com características únicas. Chame-se a isso casapianismo, espírito casapiano ou identidade casapiana.
É o meu caso: nascido numa aldeia pedregosa da raia sabugalense, órfão de pai aos quatro anos, que destino me esperava? A enxada, o contrabando ou a emigração. A Casa Pia, porém, abriu-me outros caminhos e outros horizontes. Estou-lhe profundamente reconhecido e estes textos testemunham essa gratidão.
(Continua)
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«Na Raia da Memória», crónica de Adérito Tavares
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Dezembro de 2009.)
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