Raúl dos Santos Tomé nasceu na Bismula (Sabugal) há cerca de noventa anos. Embora muito doente, felizmente ainda está no meio de nós. É filho do segundo casamento de João Varjão e de Raquel Oliveira. Deste matrimónio tem mais três irmãs: Isabel, Alice, Guilhermina e o irmão António, que junta a este agregado familiar um filho do primeiro matrimónio.
A mãe tratava da vida da casa e esporadicamente ajudava o marido nos trabalhos agrícolas e na pastorícia do rebanho de ovelhas.
Na Bismula, no último dia de cada mês, realizava-se o mercado mensal, onde se faziam as mais diversas transações de mercadorias e animais. Para ali convergiam centenas de pessoas das aldeias limítrofes.
Da Miuzela, chegavam vendedores de pão, sardinhas, carne de porco e principalmente vinho, condicionado em pipos de madeira, a fim de ser vendido ao copo ou à garrafa. Eram transportados por tracção animal – éguas ou mulas.
No lugar da Praça, junto à casa dos pais do Raúl, as vendedoras montavam ali a sua taberna. Neste negócio, nestas vendas de uns quantos quartilhos, partilhavam-se amizades, compras e alegrias, às vezes exageradas, descambando para umas pauladas, principalmente quando se bebia em excesso, o que acontecia em muitas ocasiões.
Dona Vargelina, uma taberneira com gostos musicais, reparou que o jovem Raúl tinha jeito para a arte musical e convenceu os pais a levá-lo para a Miuzela, onde juntamente com a sua filha iria melhorar os seus conhecimentos da concertina.
Raúl era um jovem vaidoso de treze anos, apresentável, com cabelos encaracolados, a fazer inveja ao Marco Paulo, quando começou a sua carreira artística de cantor.
Com o «diploma» de tocador de concertina, regressou à Bismula e iniciou os seus «espectáculos» no Largo da Ladeira, na Praça, na Relva (aqui só acontecem quando o rei faz anos), e na Santa Bárbara, o terreiro privilegiado e preferido da sua juventude bismulense.
Surgiram as típicas vozes de contestação de quem pouco ou nada faz.
Segundo os «iluminados» conservadores, não era bom na arte e, de acordo com os «bons costumes» da época, não era aceitável um rapaz e uma rapariga andarem agarradinhos na dança, ao som de um tango estonteante. Ainda estavam longínquos os tempos de um Papa Francisco chegar ao Vaticano, mas este já gostava muito do tango na Argentina, que dançou muitas vezes, embora agora prefira a milonga – um género musical tradicional.
O Padre António Jorge, Pároco de Outubro de 1937 a Setembro de 1951, não via com bons olhos aquele divertimento e lançou-lhe anátema. Ali estava o caminho da perdição para cair nos braços de Belzebu.
Com a chegada do Padre Ezequiel Augusto Marcos, em Outubro de 1951 e se manteve como Pároco até Outubro de 1962, notou-se maior tolerância. De espírito mais arejado, o novo Pároco «desviou» a juventude para a prática do desporto, jogos tradicionais, teatro, música, dança e várias actividades lúdicas.
Os pais, aqueles que tinham filhas, censuravam as meninas por se entregarem nos braços de um qualquer, mesmo que esse fosse namorado ou apaixonado. O namoro era assunto muito sério e só tinha lugar com ela na janela ou na fonte. No caminho despejava-se amiúde o cântaro, a fim de proporcionar mais olhares e contactos com aquele que se ama.
Naquela época destacaram-se muitos dançarinos e dançarinas. Tinham fama o João André, o Manuel Moleiro, o Joaquim Videira, o José Augusto (Zé do Soito), a Isabel e Adelaide Monteiro. Nos dias de hoje, destacaria a Maria Josefina Fernandes.
Raúl teve uma carreira artística longa de muitos anos. Na Bismula, sua terra natal, proporcionou inúmeros bailes aos domingos, em dias de festa ou nos dias das sortes, quando os jovens iam à inspecção militar. De muitas freguesias teve convites para actuar.
O Raúl animou muitas gerações com a sua actividade artística e ficará na memória de todos os que tiveram o privilégio de o ouvir tocar.
Os seus instrumentos musicais fazem parte de um património que pertence à família em primeiro lugar, mas as entidades que tenham sensibilidade devem estar atentas à sua preservação.
Não de devem perder estes instrumentos musicais, que marcaram uma época e são a musa que toca e canta da nossa memória.
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Março de 2012)
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