Dois meses após a chegada dos franceses a Lisboa, dois dos mais cruéis homens de mão de Junot, os generais Thomiers e Loison, aproveitam um desavisado entre soldados portugueses e franceses para promoverem uma devassa que acabou em morticínio de inocentes.
É José Acúrcio das Neves que, em páginas de sangue da sua «História Geral da Invasão…», nos descreve o sucedido.
Logo que chega a Lisboa, após a longa marcha, a esfarrapada divisão Loison é enviada para Torres Vedras, a partir de onde ocupa os fortes da costa a norte do Tejo. Entre as colunas há muitos soldados com sarna, ainda resquício da penosa marcha de Bayonne a Lisboa, e estabelece-se um hospital na vila das Caldas, junto a Peniche, para aí concentrar os doentes dos diversos destacamentos. O povo da localidade, vendo passar os sarnosos em mísero estado, não se coíbe de os escarnecer, facto que perturba o general de brigada Thomiers, que comanda as tropas naquele ponto. Para pôr fim ao atrevimento destaca alguns granadeiros para as Caldas.
A 27 de Janeiro de 1808, o segundo dia após a chegada dos granadeiros, um homem do povo diz uma graçola a esses militares quando passam ronda. Logo eles investem de espada ao alto para o castigar. O homem refugia-se em casa e uma sua irmã fecha a porta pelo lado de fora e esconde a chave. Os franceses saltam para cima da mulher, que grita e alerta os soldados de um regimento português ali aquartelado, que vão em seu socorro, obrigando os franceses a dispersar. Outros soldados franceses acorrem em valimento dos seus e igual atitude têm outros portugueses. Instalada a confusão, alguém do povo atira pedras sobre os franceses e uma delas acerta num capitão. Vale um oficial português que se interpõe irresoluto e consegue serenar os ânimos.
O general Thomiers, informado do sucedido, manda chamar o juiz de fora das Caldas e encarrega-o de organizar uma devassa que permita identificar os culpados.
A 5 de Fevereiro apresenta-se nas Caldas o próprio Thomiers, acompanhado por Loison, à frente de uma força armada que ocupou a vila de modo ostensivo.
Thomiers avoca a devassa, manda fazer interrogatórios às testemunhas, e forma um conselho militar encarregado de julgar imediatamente os acusados. Loison a tudo assiste passivamente.
O julgamento realiza-se com um ritual grotesco, em que tudo é encenado tendo por fim apontar culpados e condená-los severamente. No dia 8 dá-se termo ao julgamento, declarando-se 15 homens culpados e condenando-os à pena de morte. Destes, somente 10 estão detidos, pois os demais haviam logrado fugir, sendo ainda assim julgados à revelia. Na manhã do dia seguinte, 9 de Fevereiro, os 10 condenados são conduzidos em fila a um campo fora da vila, sendo confessados por padres durante o caminho. Chegados ao local da execução, forma o pelotão de fuzilamento, que abate nove dos condenados. O décimo escapa à execução, por um acto de humanidade tomado â última hora. Era um homem que tinha tentado fugir do local onde o tinham preso e ficara com uma perna estropiada, estando postado numa padiola contorcendo-se de dores, aguardando a sua vez de morrer. Porém o príncipe de Salm-Kirburg, um jovem oficial alemão que integra o exército francês, vendo o estado em que o condenado se encontra, pede humanidade a Thomiers e a Loison. Que primeiramente curassem o enfermo e depois decidissem o que fazer. Os algozes não forçam a execução e o pobre condenado é enviado para tratamento. Mais tarde, já são, escaparia à vigilância algo relaxada dos franceses e assim se livraria do fuzilamento.
Este acto cruel condenou e executou inocentes, satisfazendo apenas o apetite sanguinário dos dois atrozes generais franceses que quiseram dar uma lição exemplar. Outros actos de barbárie se seguiriam, maltratando e humilhando um povo que recebera o exército invasor como amigo mas depressa compreenderia que esse foi o seu erro e seria a sua desgraça.
«As invasões francesas de Portugal», por Paulo Leitão Batista
leitaobatista@gmail.com
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