Na cidade impessoal os tempos mergulham num anonimato espesso que enche as praças e as ruas, que banha moradias conseguindo subir escadas até à porta dos apartamentos.

Esta constatação é suficiente para me abrir o gosto por outros ambientes, harmonizados pela quietude rural, onde se reencontram caras conhecidas. Há, por aí, sorrisos francos embora associados às rugas que sulcam a grande maioria dos rostos. Mas os olhos dessa gente ainda se mantêm brilhantes, apesar do tempo e das adversidades. São gente de rostos castanhos de muitos sóis, rijos de muitos frios, estriados em rugas de meia lua, rugas que, apertando os olhos, se transformam em montículos floridos de pele seca e grossa mas graciosa.
Ainda encontro, por esse mundo de que hoje falo, a cara do ti Zé, dono de uma vaca maioritariamente branca, com ilhas de pelo preto, tida como leiteira, que dá pelo nome de «Boirisca». O ti Zé também tem um amigo que, por acaso, é rafeiro e de cor amarela. Esse amigo sempre o acompanha. O nervosismo do cão somado à vontade permanente de interceder pelo dono impôs-lhe o nome de «Maltês».
Por esse mundo, que hoje aqui trago, um pequeno mundo de recordações a que retorno quando posso, reencontro também o ti Pinheiro, pastor à antiga, usando botas enormes e surdas com rasto de pneu preto, alongadas por plainas castanhas afiveladas a metal a cada uma das pernas. O ti Pinheiro cobre-se com uma manta grossa, parda e peluda que, em dias de Inverno frio, apenas lhe deixa ver as maças do rosto prolongado num nariz achatado. Ele conhece cada uma das suas ovelhas pelo nome e assobia, quando as acompanha, com um assobio frio, ferido e estridente.
Estes dois viventes, já pouco mais que únicos, consomem, nos intervalos da diária labuta, algumas horas de tasca onde se bebe vinho ao copo num largo gole, seguido de outro e de um outro gole. Mas, na taberna, escorre também, mais escassamente, um sorrateiro café, essa modernice castanha, que apalada a boca e aconchega o almoço ao estômago e que, a eles, lhes prepara o ânimo para assentar velozmente as cartas na mesa, logo a seguir ao almoço, no correr de uma bisca intermitente e silenciada porque, dizem, o jogo das cartas foi inventado por quatro surdos.
O ti Zé e o ti Pinheiro habitam os sítios onde (a razão não mo explica) regresso com frequência, sítios onde ainda se experimentam aromas delicados e levemente estonteantes. Lugares onde se sentem essências que correm inspiradas na natureza e que, quando os revisito, ainda me bafejam apesar deste tempo em que vivemos perene de esquecimentos e temores. Mas, se regresso, encontro paz e sossego e consigo experimentar a lenta e agradável placidez do estar.
Por aí, por esses lugares que, repito, me inspiram sucessivos regressos, voa já o olvido, a glória esmorecida, a estrela negra. Mas, voam também ninfas subtis, luzes finas e, se for primavera, voam ainda muitas e muitas flores rubras e de outras cores.
São voos sobre velhas geografias líricas, onde há uma irrupção fresca da brisa que rejuvenesce a memória. Uma brisa que bate às portas e bafeja janelas e que plana por sobre a névoa da infinidade de lembranças.
Entro, desta forma, neste (outro) ambiente como se entrasse dentro de mim próprio e revisito-me num bem-estar ameno, na justa medida em que o stress ou a angústia me vão abandonando. Depois volto a acreditar na vida, abandonando solidões acompanhadas, quase colectivas e recupero imagens muito intensas, coerentes e submersas.
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista no Capeia Arraiana desde Maio de 2011)
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Amigo Nabais
Confesso-te, e tu conheces a minha franqueza, que me magoa bastante aquela ideia, que tantas vezes circula (e que no fundo nos auto reduz) de que o nosso interior é um território desprovido de qualquer interesse, de qualquer hipótese. Não preciso de te dizer que discordo profundamente. O nosso interior está cheio de gente trabalhadora, gente capaz, enfim, gente do melhor. O nosso interior tem potencialidades específicas algumas delas relacionadas com sua história, com a sua cultura e com hábitos e tradições. Tem uma beleza “agreste” sui generis e extremamente inspiradora como, aliás, referes no teu comentário. Dir-me-ão (como já me disseram) que sou um sonhador e que nada disto tem resultado em desenvolvimento. As duas coisas são verdade. Eu sou um sonhador e, de facto, o desenvolvimento tem sido escasso. Mas as razões do desenvolvimento ou do não desenvolvimento não são lineares e não estarão apenas relacionadas com as potencialidades. Todos seremos, eventualmente, responsáveis mas, certamente que uns muito mais que outros. De qualquer forma não serão nem o sonho nem a beleza os principais culpados.
Um grande abraço.
Amigo Capêlo:
Ao ler o teu artigo lembrei-me dos momentos que passo nas minhas caminhadas pelo campo, em contacto com a natureza. Tenho a dizer-te que é nesses espaços abertos e nesses horizontes de árvores e serranias que se encontra a melhor fonte de inspiração, desde a filosofia à religião, ou seja, sobre o nascimento, a vida e a morte.
Há pensamentos que seria impossivel ter, encerrado num qualquer compartimento de qualquer apartamento, por mais comodidades que tivesse.