Travesso devia ser o Entrudo, o Santo Entrudo, como há quem lhe chame aqui na orla raiana da Beira, onde até há quem o figure alegre e chocarreiro celícola.
E a ser santo, não é um santo qualquer, já que, enquanto os demais membros daquela corte se celebram apenas num dia, ele domina um longo período, que, culminando embora nas funçanatas de domingo gordo e da sua terça-feira, nasce com a primeira lua nova do ciclo.
Com efeito, antes das palhaçadas e entrudadas e precedendo-as quatro semanas, lá vinham as cacadas.
Distribuído em pequenos grupos, o garotio dos dois sexos corre azougado todas as ruas da aldeia, logo que se fixa o lusco-fusco, em busca de casa, cuja dona preocupada com as tarefas da ceia ou descuidada de sua índole, tenha deixado a porta da rua escancarada ou só levemente encaravelhada.
Descoberta habitação assim a jeito, dois ou três rapazitos dos mais lestos, aproximavam-se da porta, levando com eles cântaro já partido ou empalhado de garrafão, já inútil por se ter desfeito o vidrado, tudo invólucros fortemente municiado de cacos, bogalhos, bogalhas e maçãs cucas.
E, obtida a oportunidade, zás – é atirar pelo corredor fora, até à porta da cozinha aquele material que, brandido com força, provoca infernal estampido. Aturdida, a dona da casa só segundos volvidos se apercebe da causa do ruído.
Depois, vem para o exterior, de tenaz em punho, disposta a exercer nos malandrins a mais terrível das vinganças. Mas a perna dos autores do rebentamento é muito mais lesta do que a dela. E onde é que eles terão parado, mais a mais protegidos pelo negrume.
Ás vezes, os endiabrados nem fogem.
Cosendo com as sombras, lançam segunda cacada, mesmo nas bochechas da pobre mulher, cuja irritação chega ao auge.
É que ao susto segue-se a trabalheira de limpar o chão, tarefa a que a dona tem fama de ser pouco atreita, sendo esta uma das razões para a escolha.
Se a velhota é de linguagem desbragada chovem os impropérios. O rapazio nem por isso se amedronta.
E disfarçando a voz em arranques guturais replica, apontando à descontrolada mulher a possível utilidade dos atritos.
Moa as bogalhas e unte as beiças da parchana com o pó.
Então a vozearia ganha novos tons de alarido. Impressionadas, correm as vizinhas e os homens, estes de sachola ou estadulho…
Mas as cacadas continuam, muitas vezes logo na casa ao lado, desguarnecida pelo ajuntamento. E então a bogalhada parece não ter fim.
Para haver sempre forte provisão, o garotio, enquanto guarda as cabras ou anda à sirga, abana os carvalhos-robre, a mais decantada árvore da região:
Não há pau como o carvalho
Num ano dá quatro frutas
Dá bogalhos, dá bogalhas
Bolotas e maçãs cucas
Ou…
Não há pau como o carvalho
Enquanto não apodrece
Nem amor como o primeiro
Enquanto não aborrece
Ou, com uma pontinha de crítica social…
Não há pau como o carvalho
Nem lenha como a de azinho
Nem filhos como os do padre
Que chamam ao pai padrinho…
Nota:
Iniciamos com este artigo, um conjunto de outros, que ao longo da presente semana abordarão os temas carnavalescos da nossa tradição popular.
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«O Concelho», história e etnografia das terras sabugalenses,
por Manuel Leal Freire
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Muito interessante este texto – lembro-me muito bem das cacadas de entrudo e da minha participação nelas nos Fóios -, a que se alia a boa qualidade da escrita do seu autor, um verdadeiro mestre.
Na Bismula fiz algumas destas brincadeira do Entrudo e tive sorte conjuntamente com o grupo de companheiros, nunca ser apanhado. Caso contrário era o diabo…