Sentado à soalheira, o Ti Manel desfia as suas memórias revendo um tempo que já lá vai, quando a vida na aldeia era dura. O texto que se segue foi-nos endereçado por um conterrâneo que reproduziu o falar antigo, com termos e expressões que o tempo já quase apagou das conversas de hoje.
Sempre fui homem de botar palavra. Só que agora já na valho nada. Já na tenho careio nenhum. Sou um papalvo que praqui vivo. Já na tenho préstimos. Vivo de recordações.
Estou-me a lembrar de quando inda tinha a minha casita, com a minha Marquinhas e os mês dois filhos. Era uma vida dura isso era, mas vivia-se. Lembro-me quando íamos ao marfolho e à farrém pro vivo. Sim, porque nós tínhamos duas vacas, um marranito, duas cabras e um burrito. Mas tamém tínhamos pitas e uns coelhitos. Dava pra se viver, mas com trabalho.
Os garotos nesse tempo, tinham muita carava. Na era como agora, que nem garotos há. Eles jogavam ao bogalho, à Xona, ao pião, à cantarinha e, é claro, ajudavam tamém a tratar do vivo e das terras. Há noite, como na havia televisão, íamos prá lareira. Comia-se uma mastiga de pão com tchoiriço, ou carne gorda, às vezes, um cagenadinha de queijo e íamos inganando a fome e passando o tempo. Os garotos, sentavam-se numa manta de trapos, e aí brincavam tamém. Às vezes escarrapachavam-se no moirão, junto à pilheira, pra se aquecerem melhor e iam apichando o lume com uns cavaquitos ou giesta. Olhe, entchiam-se todos de fonas.
Quando íamos pró campo, com o vivo, levávamos sempre um bom fatroco de pão com peguilho. Umas vezes queijo, outras o que havia ou presunto ou enchido e, às vezes, azeitonas. Levávamos tamém água e uma botelha de vinho, porque eu bebia sempre um gortchito aos comeres.
De inverno, era sempre pior. Tínhamos que cortar alguma lenha no cabanal, que já tínhamos acareado no tempo seco. Tínhamos tamém de acarretar a comida suficiente pra dar aos animais.
Nós aos comeres, tínhamos sempre um caldito, umas vezes de macarrão com gravanços, outras vezes de feijão com couves. Nisso a Minha Marquinhas era jeitosa. Deitava duas ou três gadanhas a cada um e, só despois é que servia o resto, que era, muitas vezes, carne guisada ou assada e, um pouco da matança, que íamos acompanhando com umas boas fatigas de pão.
Aos domingos íamos todos à missa. A minha Marquinhas arranjava-nos bem. Íamos todos, sempre muito graves.
As cosas na eram como agora. Eram mais reles. Os telhados das casas tinham muitas frinchas, que deixavam passar o vento, que até assobiava. Mas ele tamém passava pelas taliscas das portas, que não cispavam bem. Olhe, era assim. Outros tempos, outras eras. Inda passámos maus bocados.
Quando andávamos por lá, até de noite escura, às vezes, cheguei a ter medo. Quando inda era garoto, muitas vezes, me pus a cabanir por causa dos lobos. Era a vida.
Mas pronto. Vivíamos sobretudo do renovo e do vivo. Íamos à carumba, aos ramalhos, à lenha, à bolota, às castanhas e, no tempo deles, íamos aos tartulhos e aos míscaros. Olhe, vivíamos da terra e da criação.
Mas na havia comodidades como agora. Tomávamos banho nuns caldeiros despois de amornarmos uma pouca de água, que trazíamos da fonte. Lembro-me dos garotos, inda pequenos, encarrapatos, a chafurdar na água dentro de um barranhão grande. Era assim.
Tamém tivemos um cão, mas era tão lambão, que uma vez nos comeu duas pitas e despois disso, nunca mais quis nenhum.
Olhem, vossemecês já devem estar infadados e infastiados de me ouvir. Sou um palerma, mas sou preado pra falar.
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Octávio Carreto
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