Há verdadeiros valores oriundos das nossas terras que parecem diluir-se nas brumas das grandes cidades como Lisboa e Porto. Por isso, eu prefiro contactá-los nas nossas terras da beira raia. Assim, sinto-os mais próximos, mais humanos, mais amigos. E, observando melhor, até se parecem connosco. Riem-se, contam anedotas, espirram, tossem e comem como nós.

Foi assim, no ano passado, com o Professor Fernando Carvalho Rodrigues, homem tão igual em porte como em comunicação, beirão inteligente e notável, sempre de grande talento sem deixar de ser um próximo e um popular a sentir-se bem à vontade nas nossas terras.
Foi assim também com o nosso quase conterrâneo e amigo de longa data, João Inês Vaz, também ele Professor universitário, mais virado para o seu Viseu profissional que para o seu Soito de infância, que nos deliciou com uma verdadeira odisseia anatómica e antropológica em redor de um porco, mas também de um bucho que já tomámos o gosto e o hábito de confecionar em nossas casas, considerado como um bom prato de degustação em várias partes do nosso país e até no estrangeiro onde residem pessoas originárias das nossas terras, graças à louvável atuação desta confraria.
Neste ano vai vir de Lisboa o Professor Albino Lopes, com a sua áurea de catedrático, tendo adquirido renome a ensinar primeiro no ISCTE e agora na Universidade Técnica de Lisboa onde é o mentor prestigiado na área dos recursos humanos.
Mas que bela lição esta, deixar as togas penduradas nos vestíbulos das universidades e vir até às nossas terras beirãs apanhar o ar puro dos contrafortes das serras das Mesas e da Malcata no mês de fevereiro, em deambulações rituais à volta de um bucho que desde os tempos imemoriais nos fez perder a cabeça, refestelando-nos até à gula pecaminosa, antes de entrarmos no túnel da ascese quaresmal que nos conduzirá até ao pórtico da páscoa da ressurreição.
Apesar de Albino Lopes ser um homem de toga e de saber, a aldeia, mas também o bucho ajudaram-no a ficar sempre amigo e próximo das suas origens.
Congratula-se, sem qualquer dúvida, vir até aos Fóios, ver mais uma vez o seu amigo José Manuel Campos, mas agora em missão fraterna e oficial para proferir a lição de sapiência perante os confrades do Bucho Raiano, e também para aproveitar repousar-se um pouco em Vale de Espinho, sua terra do coração, com sua amada Maria Olívia, que aqui nasceu e ensinou durante largos anos e onde é designada a Senhora Professora Olívia, quase mais conhecida no concelho e no distrito que o saudoso professor Zé André.
Também oriundo das beiras, Albino Lopes conhece estas nossas terras, onde vive durante períodos curtos mas intensos, há precisamente 40 anos, com a sua simpática e bela amada. Aqui tem uma quase-mãe centenária e uns manos que passam com ele serões intermináveis, sonhando mudar o mundo, e que chegados às suas terras de trabalho conservam a recordação de uns bons momentos de amizade e de fraternidade, ficando logo desejosos de voltar ao paraíso perdido que são os horizontes paisagísticos desta raia beirã.
Dir-se-ia que o bucho atrai o saber universitário. O bucho cativa e obriga à investigação. Ao alimentar o homem, o bucho alimenta-lhe também o desejo de análise. E o primeiro investigador, o primeiro universitário é precisamente o simples desmanchador do porco que, três dias depois, se debruça sobre o seu cadáver, num verdadeiro estudo e análise de todas as partes anatómicas, como numa autêntica Lição de Anatomia, à maneira do célebre quadro de Rembrandt, para o esquartejar e entregar posteriormente à dona de casa que fará dele como que a base da economia doméstica, tal como dos nosso tempos de infância.
Esta démarche da observação direta tornou-se a chave fundamental do saber moderno, como se ensina atualmente nas universidades, criando assim uma rutura com a abordagem medieval do conhecimento e da ciência.
E com isto está quase demonstrada a relação que existe entre o saber e o porco, entre a ciência e o bucho. É sem dúvida por causa disso que um universitário de renome teria aceitado fazer a lição não de anatomia, mas de sapiência, no próximo capítulo, no lugar paradigmático dos Fóios, próximo de uma terra não menos paradigmática que tem o nome de Vale de Espinho, em plena raia beirã.
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«Pedaços de Fronteira», opinião de Joaquim Tenreira Martins
Também gostei do texto e dos dois comentários anteriores.
Amigo Joaquim José, o teu artigo é uma magnífica lição, diligentemente articulada, que atiça um desejo irresistível para degustar o nosso “Bucho Raiano”, a todos aqueles que nunca tiveram a virtude e a oportunidade de o ter provado…
Quando acabei de ler este texto, lembrei-me muito dos personagens do romance “A cidade e as Serras” de Eça de Queirós. Não será, por certo, uma associação desprovida de fundamento.José Manuel Romana