A falar nos entendemos. E a escrever também. Só que, infelizmente, cada vez falamos e escrevemos pior. Os exemplos são abundantes e desesperantes.
Todos nós, os que prezamos a língua-mãe (Fernando Pessoa dizia: «A minha Pátria é a Língua Portuguesa») abrimos os olhos e os ouvidos de espanto a toda a hora. Apenas alguns exemplos:
– Há dias, no Telejornal de um dos nossos canais, o jornalista de serviço dizia e repetia: «Isto não tem nada a haver com o caso», quando queria dizer «Isto não tem nada a ver com o caso.» Na verdade, esse senhor é useiro e vezeiro no disparate: já lhe ouvi «perjorativo» em vez de «pejorativo», «perceptor» em vez de «preceptor», «interviu» em vez de «interveio». Aliás, a conjugação deste verbo é um verdadeiro tormento para muita gente da comunicação social e da política.
– Há uma linguagem tipicamente «escolar», juvenil, que começa a instalar-se na comunicação social: os nossos estudantes costumam dizer «Tive nega a Matemática»; pois bem, hoje encontramos adoptada esta fórmula na maior parte dos nossos jornais, incluindo os «de referência». É habitual escreverem «Os resultados dos exames nacionais a Português…» em vez de, obviamente, «Os resultados dos exames nacionais em Português…» ou «na disciplina de Português».
– Aqui há tempos fui ao escritório de um jovem advogado prestar declarações como testemunha de defesa num caso de Tribunal de Trabalho. Ele tomou nota de tudo o que eu disse e, no final, deu-me uma espécie de acta para assinar. Fiquei abismado: em duas folhas A4 havia mais de vinte erros ortográficos e de concordância. Para não falar dos erros de acentuação e de pontuação. Uma lástima! Nos velhos tempos do exame da 4.ª classe, o Professor Cavaleiro reprovava-nos com mais de 5 erros no Ditado!
Vêm estes desabafos a propósito de quê? O título, lá em cima, fala de um médico e cientista, não de um professor de Português! Só que Ricardo Jorge, para além de eminente higienista, foi também um notável humanista, uma verdadeira autoridade na Língua Portuguesa, crítico de Arte, historiador da Medicina e da Literatura, um dos melhores intelectuais da sua geração. Ricardo Jorge, tal como sucedeu com muitos outros brilhantes espíritos seus contemporâneos, cultivava com rigor as ciências e as letras. Aliás, existe em Portugal uma série notável de médicos que se destacaram nas letras portuguesas, desde o próprio Ricardo Jorge a Egas Moniz, de Miguel Torga a Fernando Namora e António Lobo Antunes.
Ricardo Jorge nasceu no Porto, em Maio de 1858, no seio de uma família humilde. Sua mãe, apesar da reduzida preparação cultural que possuía, incutiu-lhe o gosto pela leitura, pela Língua Portuguesa e pela História da sua terra. Desde cedo se distinguiu como um aluno excepcional, quer no liceu quer na Escola Médico-Cirúrgica do Porto.
No próprio ano em que se licenciou em Medicina (1879), iniciou a sua actividade como professor universitário e articulista de revistas científicas. Nos anos 90 desenvolveu uma intensa actividade como investigador, nos domínios da Bacteriologia (tendo frequentemente colaborado com Câmara Pestana) e da Estatística e Demografia Sanitárias.
Entre 1899 e 1906 exerceu as funções de Inspector-Geral de Saúde e de professor de Higiene na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Foi por essa altura que o eminente sanitarista fundou, na capital, o Instituto Central de Higiene, mais tarde designado Instituto Superior de Higiene Doutor Ricardo Jorge.
O período que decorreu até ao final da I Guerra Mundial (1918) foi de grande intervenção internacional, tendo Ricardo Jorge efectuado várias viagens a Paris, onde trabalhou com os mais notáveis bacteriologistas e epidemiologistas, como Calmette, um dos descobridores da BCG. De 1918 a 1920, Ricardo Jorge travará algumas das mais duras batalhas da sua carreira, contra terríveis epidemias que assolaram a Europa e o Mundo no pós-guerra: a gripe pneumónica, o tifo exantemático, a varíola e a difteria.
Após a criação da Sociedade das Nações (a antecessora da actual ONU), em 1919, Ricardo Jorge foi escolhido para o Comité Internacional de Higiene, confirmando-se assim o seu grande prestígio interno e externo.
Nesses tempos sombrios, particularmente num país subdesenvolvido como o nosso, em que a mortalidade infantil andava ainda próxima dos 200 por mil, e onde menos de 5% das habitações tinham casa de banho, a acção de um sanitarista e higienista como Ricardo Jorge parecia um frágil dique face a um mar agitado e alteroso. Mas o ilustre médico, tal como Sousa Martins ou Câmara Pestana, meteu ombros à ciclópica tarefa de modernizar este pobre país retrógrado, com estruturas ainda semelhantes às do Antigo Regime (lembremos que Portugal tinha perto de 80% de analfabetos em 1900!).
Foram verdadeiros gigantes, estes cientistas da viragem do século. Por isso insisto em lembrá-los aqui, modestamente, repito.
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Os leitores interessados em estudar mais desenvolvidamente a personalidade fascinante do ilustre cientista e humanista que foi Ricardo Jorge, poderão consultar a obra de Fernando da Silva Correia, A vida, a obra, o estilo, as lições e o prestígio de Ricardo Jorge, Lisboa, Instituto Superior de Higiene, 1960.
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«Na Raia da Memória», crónica de Adérito Tavares
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Dezembro de 2009.)
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