No Casteleiro, até há 40 anos, durante três ou quatro meses em cada ano, muita gente, desde que tivesse um pedaço de terra à beira da ribeira, tinha uma tarefa muito interessante – mas muito, muito trabalhosa: dedicava-se ao cultivo e tratamento do linho, desde a semente até ao lençol branquinho, às camisas ou às toalhas e panos.
A Humanidade já conhecerá o linho há nada menos do que 5.000 anos A. C. e na Península haveria milho em 2.500 A.C.. Com o linho fazia-se roupa e diversas peças de uso doméstico, como camisas ou lençóis, e até religioso, como toalhas de altares.
Tudo começava pela sementeira. O linho deve ser semeado em terreno húmido e com bastante água. Isso, semear o linho, acontecia em Março e Abril. Mas o linho tem um ciclo natural rápido: três a quatro meses depois, estava pronto a arrancar e… começar uma infindável série de operações até obter o tecido de linho.
Note. Eu estou a escrever como se ainda se cultivasse o linho no Casteleiro. Mas não. Já desde os anos 70 que a tarefa rareou na minha terra e hoje nem existe.
Depois de semeado, o linho exige muita rega, muita água.
O que era o linho? Que aspecto tinha?
Deve haver leitores que se calhar nunca o viram a não ser já costurado. O aspecto da planta é o dos cereais, de palha. A altura é um pouco menor do que a do centeio ou do trigo. De resto, a «seara» de linho era idêntica a qualquer outra das searas que bem conhecemos.
Mas não é ceifado: é arrancado (com raiz e tudo).
Começa agora o cabo dos trabalhos
O linho dava muito trabalho. Sobretudo depois de ser arrancado. Se não, leia: arrancar, levar para a ribeira para curtir, enterrado na água e tapado com areia durante quinze dias, estender na areia para secar em molhitos encostados uns aos outros, levar para casa… e aí outra série de tarefas infindáveis e duras, até à fiação e à feitura / costura das peças desejadas: lençóis, toalhas etc.
Logo para começar, era preciso bater o linho de forma bem forte, com uma maça própria, de madeira e durante muito tempo. Havia até quem passasse dias inteiros a bater o linho num passeio de pedra que lá havia ou num banco de pedra. Bater muito. Quase até à exaustão.
Segue-se outra operação dura: esfregar à mão para limpar até saírem as praganas todas.
Depois, o linho era espadelado – com um instrumento específico chamado mesmo espadela. Essa operação era feita contra um cortiço, mas, fazem-me notar, sem bater na cortiça para não partir o linho.
É que, nestas operações de preparação do linho, ainda há mais isso: tarefas duras e feitas com cuidadinho, para que o produto não fosse adulterado…
Agora, atenção: do linho-caule saem pelo menos dois produtos finais: o linho ele mesmo, produto fino, mais delicado, e a estopa, mais grosseira, menos limpa de fibras, digamos.
Onde se faz essa bifurcação? Depois de espadelado, o linho era ripado «até ficar muito fininho e molinho». E separado: para um lado o que havia de ser o linho propriamente dito, mais fino, e para outro lado, os «tumentos», mais grosseiros, de que haveria de resultar a estopa.
Os teares da aldeia
Da fiação ao tear, vai ainda muito trabalho. Logo para começar, o linho era fiado, com roca adequada. Daí passava-se à dobadeira para fazer as meadas e ao argadilho para fazer os novelos. Sabem o que era uma estriga de linho?
Nada menos do que a quantidade de linho ainda em «rolo», digamos, que as mulheres punham na roca para depois o puxarem com os dedos, molhando-o, lambendo os dedos e dele fazerem os fios, enrolando-os no fuso (fiar é isso).
… Tudo ia depois à barrela em água a ferver com cinza num cesto, até o linho amolecer (o linho era um material muito duro – uma camisa ou um lençol de linho duravam uma vida).
Agora, então, os teares. Havia na aldeia três ou quatro teares. Peças-chave do processo. Era aí que as artesãs populares, grandes artistas do ramo, exerciam com mestria o seu mester… Eram apreciadas por toda a gente e eram indispensáveis a quem, tendo linho, queria então fazer os lençóis, as camisas (dantes), as almofadas, as toalhas compridas e de rosto, em geral com franjas, os panos para tapar os tabuleiros dos presentes de casamento e similares.
No tear, o fio de linho era manobrado com a ajuda de um pequeno instrumento oval comprido chamado «canela». As peças de tecido de linho iam por fim para a ribeira durante mais alguns dias para corar ainda mais ao sol – tinham de ser sempre regadas permanentemente.
Só depois é que eram cortadas em casa para fazer as utilidades (roupa de cama e outra, as utilidades para a casa etc.).
Um pequeno registo sensitivo final: o cheirinho dos lençóis de linho daqueles tempos é inesquecível. Perdura uma vida inteira.
Notas
1. Havia milhares de fotos que podiam ser seleccionadas para esta peça. Escolhi três: roupa de cama em linho, uma dobadeira, e numa mesma foto, uma espadela e uma roca, utensílios guardados há décadas e expostos cá em casa.
2. Na sexta, na peça sobre a morte de Manuel António Pina, fiz um comentário. Mas esse texto ficou incompleto. Propositadamente incompleto, porque não era justo falar de outra coisa naquele momento. Mas ficou guardada e vai agora: a foto de MA Pina, da autoria de Kim Tomé, é especial. Muito especial, em meu entender. Fica aí o aparte, porque é justo. Se quiser voltar lá, clique… (Aqui.).
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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Muito bem, bom amigo da Beira.
Terei todo o prazer em ler o «Terras de Ninguém».
Mande-me um mail para jcarlosmendes@gmail.com .
Depois, farei aqui um recensão e talvez um pouco mais.
Até porque os caminhos da vida levaram-me a conhecer bastante bem as gentes do Fundão (cidade, menos as das aldeias dos arredores. Mas um tio meu era das Minas da Panasqueira).
Saudações beirãs (=cordiais), também.
Incentivado pelos comentários, vou fazer uma confissão. Vou partilhar aqui com os poucos que me vão ler algo que me assalta sempre que me ponho a escrever «para» a Grande Memória do Povo (GMP) – porque é isso que eu acho: é que todos estamos a juntar tijolo em cima de tijolo para essa GMP.
Perdoem estas linhas mais intimistas, então.
O que me costuma assaltar e está sempre pronto a sair das teclas para o écran é isto:
– se me lembro tão bem do que se cultivava e do que se comia lá em casa quando eu era pequeno;
– se sabia tão bem o que se passava nas casas da família e dos vizinhos;
– se ninguém me escondia nada;
– se conhecia tão bem a aldeia e tudo o que nela acontecia…
por que raio é que tenho este vício de antes de escrever estar sempre a confirmar com outras pessoas, a pormenorizar, a saber mais, a perguntar se era mesmo assim… já que sei tão bem as cores, os cheiros, o espírito das coisas, a ideia global da aldeia?
Será que me perdi na cultura urbana, leve, ligeira, diversificada?
Será que perdi a genuinidade das coisas simples, mas grandes e duradouras de antanho?
Desculpem a divagação. Sei que há aqui um problema de auto-confiança.
Foi a primeira vez que me «abalancei» a tal confissão de incapacidade.
Isto para dizer que muito do que aí fica é confirmado e reconfirmado – portanto acaba contraditoriamente por me deixar mais sossegado quanto à sua genuinidade.
O que é bom, porque é uma garantia de autenticidade…
Boa noite, caros amantes de costumes ou tradições.
Amigo José Carlos, felicito-o pela sua dedicação a esta causa, que é a preservação de memórias e de utensílios agregados às mesmas.
passei por aqui… para fazer uma pesquisa complementar aos meus conhecimentos que se o interesse de outrora fosse o mesmo do de então, com certeza não teria “ignorado” ou esquecido facilmente o que amigos, cuidadosamente e de prazer, me iam relatando. Foi numa aldeia serrana do Concelho do Fundão, onde, acolhido por uma família de camponeses, junto com eles, fui agricultor, pastor de cabras, tratador de galinhas, patos e coelhos, rachador de lenha, hortelão e, não só ao serão, mas também durante as tarefas, fui recetor dos longos e inúmeros contos de como se procedia a determinadas tarefas, assim como o nome das ferramentas nelas exercidas. Amigo José Carlos, desta vez felicito-o, por pertencer a uma zona do país onde as pessoas são de uma humildade sem precedentes, permitindo que quem as conhecer se sinta em família. Foi neste sentido que me predispus em escrever algo sobre o povo que tão bem me recebeu: Um romance onde consta a sua humildade, compreensão, dedicação, cooperação, amizade, afeto, os seus costumes e preservações, a desertificação, a solidão e, por fim, a morte: causa dos árduos trabalhos nas minas da Panasqueira. Logo que possível, terei todo o gosto em lhe enviar um exemplar: TERRAS DE NINGUÉM
Cordiais saudações
Carlos de jesus
Caros Conterrâneos:
Estamos aqui perante uma situação deveras curiosa: 3 pessoas que acabam por exprimir a partilha de ideias comuns relativamente a um mesmo tema: A preservação da memória dos povos. Neste caso restrigidos aos que melhor conhecemos: “Os nossos” .
Muito embora perceba e compreenda a imagem que pretende transmitir com o telemóvel avariado, perdoe-me caro J C Mendes mas a comparação entre uma espadela do linho e este objecto que tanto usamos parece-me excessiva, embora clara. É, por vezes com imagens fortes que conseguimos transmitir ideias Continuemos a transmitir aquilo que apenas nós poderemos fazer.sob pena de, se o não fizermos, se perder a memória .Um abraço a ambos.
JFernandes
Aprecio muito os artigos do José C. Mendes e relativamente ao comentário do J Fernandes com a devida vénia faço minhas as palavras dele,
Se me permitem deixo um alerta aos mais desatentos, porque poderá haver ainda em alguns sótãos ou arcas velhas artefactos como os que as fotos documentam e que são peças de museu de valor incalculável.
Era eu criança de tenra idade, quando meus avós faleceram, mas recordo que havia no sótão diversos utensílios que meus pais e meus tios, talvez por ignorância queimaram…comentando “isto nunca mais tem uso”….
Caro F. Latote,
1. Obrigado pelo apreço manifestado.
2. Penso que o mérito maior é das pessoas, em geral da geração (ainda) anterior à minha, que me contam tudo com mil pormenores – muitas vezes tenho esse problema: o que aproveitar, o que deixar de fora…
3. Os meus méritos poderão ser apenas dois: a forma como «espremo» as memórias dos interlocutores, que adoram contar; e a selecção que tenho de efectuar em torno dos apontamentos de cada caso.
Adoro escrever sobre essas matérias da Grande Memória do Povo.
Mas quanto aos seus pais e tios, que deitaram fogo às memórias… sempre lhe digo para o pôr a pensar que nunca me passou pela cabeça guardar o telemóvel que avariou ou deixou de servir.
Não sei se está a ver: para os seus pais a espadela que queimaram (imagino) é equivalente aos nossos aparelhos de hoje que avariam ou deixam de servir e vão para onde?
Lixo.
Acho que não devo condenar/censurar pessoas porque viveram pelos códigos da sua época…
Caro JFernandes,
Obrigado pelo apreço.
O meu método de trabalho quando escrevo sobre estas matérias é o da recolha de depoimentos de pessoas que viveram estas situações e a elas se dedicaram – as quais adoram falar sobre os assuntos.
São conversas muito repetidas e sempre muito agradáveis.
Depois é só organizar, sistematizar, escrever sem repetições… e mandar para os simpáticos editores do ‘Capeia’…
Um abraço pelo seu interesse por estas questões que vêm de e nos levam de regresso a um «antigamente» muito nosso.
Boa noite.
Por norma, não há tarefas no mundo rural, que sejam fáceis de executar.
Como executante de algumas durante a minha infância (na altura não se chamava trabalho infantil) conheço bem a dureza dos trabalhos do campo não do Casteleiro mas da zona mais raiana a norte (Pailobo-Almeida).
Sem ter uma visão saudosista dos tempos em que se tratava o linho no Casteleiro, se decruava a terra, se ceifava o centeio, se malhava o pão, etc. é de extrema importância que se escreva sobre estas tarefas e a forma como eram executadas.
São pessoas como o autor do artigo e deste comentário que poderão prestar ao futuro este serviço. É que tanto quanto sei ambos viveram, cada um à sua maneira, os tempos em que assim eram executadas e falo por mim, executei algumas delas durante algum tempo. Se o não fizermos
, perder-se-á um conhecimento que mais ninguém terá, daqui a 50 anos.
Parabens pela descrição.
JFernandes(Pailobo)