«Aquilo é um Rei Herodes!» Era assim que se dizia no Casteleiro para dizer «pessoa mesmo muito má». Isto tem a ver com a evolução corrompida do sentido de certas palavras.

Vamos ver se me faço entender: há palavras cuja evolução foi corrompida ao longo dos tempos em razão de novas grafias ou até de nova sonorização. Estas são o que costumamos designar por corruptelas. Mas há outras que, por razões de cultura, quase sempre muito por influência do universo católico envolvente, foram corrompidas no seu significado. É dessas que hoje aqui falo.
O que habitualmente chamamos corruptela é, por exemplo, o percurso da palavra «você» que resulta de «Vossa Mercê», que deu vossemecê e depois você. É um exemplo clássico.
Para deixar claro o modo como penso que estes fenómenos foram acontecendo em mais de 2 000 anos, volto atrás na grande História da nossa terra e da nossa língua.
Os eruditos falavam, falavam, mas os soldados romanos (sempre eles, para mim) não conseguiam pronunciar tudo – e vai de abreviar, compactar as sílabas. Deu resultados magníficos. Porque eles depois trouxeram essas sílabas para as nossas regiões. Misturou-se por aqui toda essa amálgama com o que já cá estava e que já era uma grande misturada e… eis a língua portuguesa no seu melhor.
Essas são as corruptelas – e diversos graus e modulações.
Mas do que eu aqui hoje quero falar é de outra coisa. É daqueles casos em que a palavra até é muito bem pronunciada (estranhamente bem), mas o seu significado foi completamente distorcido. Não pelo Povo, acho. Mas pelos seus habituais mentores, fossem os intelectuais, fossem os eclesiásticos. Eles tinham nas aldeias uma influência pesadíssima.
Realmente: onde é que seria possível (conhecendo nós o grau de acesso cultural normal numa aldeia do século XX, primeira parte) uma idosa aceder à palavra «maçónico»? Só com o empurrão dos homens letrados.
E foi assim que as coisas se passaram. Nem vale a pena pôr muito mais na carta…
Palavras cujo sentido foi corrompido
Em muitos casos, as pessoas deram a certas palavras significados que nada têm a ver com a origem ou sentido lexicológico. Em geral, tanto quanto conheço, para dizer mal de…
São palavras que originariamente iam num sentido mas acabaram por ganhar vida diferente. Muitas vezes, o Povo acabaria por lhes dar um significado diferente e mesmo contrário ao seu verdadeiro sentido. Em muitos casos, por influência religiosa.
O caso da palavra «maçónico» é para mim dos mais paradigmáticos.
Havia, claro, quem sempre tivesse odiado os maçãos originais (na origem, «maçons», pedreiros, operários – atenção)… vai de ensinar, apoiar e incentivar o Povo a dizer:
– Aquilo é que é um maçónico…
Isso, para dizer que a pessoa é de má índole, não presta. Este é um caso de corrupção de significado de uma palavra. Mas há muitos casos…
Trago aqui apenas meia dúzia de exemplos. Não vale a pena bater muito no ceguinho, nem gastar muita cera com tais defuntos.
São os tais casos de corruptela mas ao nível do sentido das palavras. Eis alguns exemplos (muita influência bíblica, como não podia deixar de ser):
– Judeu. Sabemos que os habitantes da Judeia, uma das regiões da Palestina de antanho (as outras eram: Galileia e Samaria), eram de facto os judeus. Mas depois, por influência romana provavelmente, judeu passou a ser o habitante de toda aquela zona da Palestina. Ora quando o Povo diz:
– Aquilo é um judeu…
Quer dizer que é uma pessoa mesmo má. Capaz de atraiçoar e falsear. Digamos, capaz de matar Cristo, pronto!
Já que estamos naquela zona do Planeta. É a figura da foto. Foi rei da Judeia, a mandado dos Romanos. Foi ele que condenou Cristo. Dizia-se (diz-se) no Casteleiro para adjectivar certas pessoas:
– Aquilo é um Rei Herodes…
Quer dizer que é mau. Antes de mais, para a mulher e os filhos, em geral as grandes vítimas. Mas não só.
Agora o caso da palavra «maçónico» já acima referido «à ligeira»:
– Maçónico. De mação.
Quando a pessoa dizia:
– Aquilo é um maçónico…
Nem valia a pena discutir. Era pessoa nada de igrejas e portanto capaz de tudo. No Casteleiro havia uns quantos, bem conhecidos: uns maçónicos.
Mas depois maçónico passa a ser qualquer pessoa que não fosse praticante religiosa.
E agora eu pergunto: mas que mal fizeram os maçãos originais (não consigo dizer «mações», sei lá porquê) para merecerem tal epíteto?
Outras:
– Valdevinos. Da referência ao Rei Balduíno. Devia ser um tanto estroina.
– Aquilo é que é um valdevinos…
Quer dizer que a pessoa fazia vida de tascas e arredores das mesmas, com os condimentos que se adivinham… um vadio. Coitado do rei…
– Perua. Bebedeira a sério, tipo «gateira», mesmo.
– Estava cá com uma perua…
Estava bêbedo que nem um cacho.
Coitadas das peruas. Bebem, mas só quando os humanos as embebedam nem sei porquê.
Mais uma, finalmente, e bem sintomática:
– Azamel. Correcto seria dizer-se «azemel», mas o Povo, e bem, diz «azamel». Mas para mim isto não é assim tão líquido. Sobre este termo, antes de mais uma nota: a palavra talvez devesse mesmo ser «azamel»: originariamente vem do árabe (az-zammal – aquele que conduz as azémolas, os animais). Ainda há famílias árabes assim chamadas (Azhammal, se não estou em erro).
As pessoas diziam:
– Aquilo é um azamel…
Quer isto dizer: é uma pessoa que não tem jeito para nada que se veja, ou que está sempre doente, um fracote. Que raio de mal tinham os azeméis (almocreves, carregadores de cargas das bestas)? A não ser que se fartavam de gemer debaixo dos pesos excessivos…
Termino com uma que toda a gente usa:
– Macaco. «Aquilo é um macaco» quer dizer que é um «charepe», que não é de fiar.
E agora pergunto eu: que culpa terão os macaquinhos, coitados? Pior ainda quando se diz(ia): «Aquilo é um macaquito reles» – aí, então, era o fim da linha contra a pessoa visada.
Ao fim e ao cabo: caminhos diversificados de uma língua que sempre esteve bem viva e se recomenda…
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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Caro Paulo Leitão Batista,
Acho que isso é muita modéstia.
E mais leitores devem achar o mesmo.
A recolha e tratamento de toda a matéria relativa ao «Léxico de Riba Coa» tem encantado quem se interessa – e é o meu caso.
Nota-se pormenor, minúcia, sinapse… – ao fim e ao cabo: trabalho de casa bem feito…
No que me toca a mim:
– tento marcar as diferenças que conheço, para que sejamos mais unidos na pequeníssima diversidade «linguística» que nos completa;
– tento divertir os leitores com coisas bem sérias, seguindo abordagens, digamos, bem dispostas;
– tento «pôr o Casteleiro no mapa» do ‘Capeia’ – e se o conseguir já me dou por satisfeito, claro. Pelos comentários que têm vindo a lume, julgo que não vai mal encaminhado esse meu objectivo.
Sempre escrevi sobre coisas tão sérias (política, autarquias, economia e tal) que, desta vez, está a ser um prazer redobrado.
Obrigado pelo interesse, meu caro.
Um abraço tb.
José Carlos Mendes,
Tenho que lhe agradecer os seus pertinentes comentários à colecção de palavras que constituem o essencial do nosso léxico popular, que venho publicando na coluna «O falar de Riba Coa», e também estas suas curiosas «achegas» às peculiaridades da forma de falar do Casteleiro.
Noto porém que as diferenças não são tão essenciais quanto isso, embora reconheça que o Casteleiro está muito ligado quer à Cova da Beira quer às Terras do Campo (campina de Penamacor e Monsanto) em termos de cultura popular e, assim, também em termos de linguagem.
Contudo, aquilo a que chamo «o falar de Riba Coa» vai do ponto de vista geográfico para além das terras raianas do concelho do Sabugal, e abarca aquilo a que se pode chamar a Beira Coa, pois comparo termos usados em várias terras recorrendo a diversos autores. como sejam Leopoldo Lourenço, do Freixo, Célio Rolinho Pires e Manuel dos Santos Caria, de Pêga, Carlos Guerra Vicente e Júlio António Borges, ambos de Figueira de Casteleo Rodrigo, entre outros.
Trata-se pois de uma colecção de termos com suas cambiantes e variantes, que se fazem sentir de terra para terra.
Analiso com interesse o conjunto de referências ao falar do Casteleiro que inclui nos seus artigos inseridos na coluna «A minha Aldeia» para também os incluir a seu tempo na minha «listagem» de termos populares.
Abraço.